sábado, 11 de julho de 2015

Leituras - Carta a um Refém

Quando, em Dezembro de 1940, atravessei Portugal de passagem para os Estados Unidos, Lisboa surgiu-me como uma espécie de paraíso luminoso e triste. Falava-se então muito da invasão iminente, e Portugal apegava-se  à ilusão da sua felicidade. Lisboa, que organizara a mais encantadora exposição que já se vira no mundo, sorria com um sorriso um tanto pálido, semelhante ao daquelas mães que, não tendo notícias de um filho que está na guerra, se esforçam por o salvar através da sua confiança:" O meu filho está vivo, porque eu estou a sorrir...", "Vejam como estou feliz, tranquila e bem iluminada...", assim dizia Lisboa. O continente inteiro pesava sobre Portugal como uma montanha selvagem cheia de tribos predatórias; Lisboa em festa desafiava a Europa:"Como poderão tomamr-me por alvo quando tenho tanto cuidado em não me esconder! Quando eu sou tão vulnerável!..." (...)
Portugal ignorava o aptetite do monstro. Negava-se a acreditar nos maus indícios. Portugal falava da arte com uma confiança desesperada. Atrever-se-iam a esmagá-lo com o seu culto pela arte? Portugal tinha posto a descoberto todas as suas maravilhas. Atrever-se-iam a esmagá-lo com todas as suas armadilhas? Mostrava os seus grandes homens. Na falta do exército, na falta de canhões, erguera, contra todo o ferro do invasor, todas as suas sentinelas de pedra: os poetas, os exploradores, os conquistadores. Na falta de exército e de canhões, todo o passado de Portugal obstruía o caminho. Atrever-se-iam a esmagá-lo perante a herança do seu passado glorioso? E, debaixo do seu sorriso, eu achava Lisboa mais triste do que as minhas cidades extintas. 

Conheci famílias um pouco excêntricas que conservavam à mesa o lugar de um morto. Negavam o irreparável. Não julgo, porém, que esse desafio seja consolador. Os mortos devem ser considerados mortos. No seu papel de mortos, encontram outra forma de presença. Tornavam-nos ausentes eternos, convivas atrasados para a eternidade. Trocavam o luto por um espera sem conteúdo. E essas casas pareciam-me mergulhadas num mal-estar irremediável tão sufocante como o desgosto, mas de uma outra maneira. (...) Portugal tentava acreditar na felicidade, mantendo-lhe o lugar e conservando os seus candeeiros e a a sua música. Em Lisboa, representava-se a felicidade, para que Deus acreditasse mesmo nisso" (págs. 13-15)

De um livro de amizade a um judeu na França ocupada, serviu muito também para apresentar uma conversa, um diálogo de ideias com a França de 43. Livro de experiências pessoais de Saint-Exupéry revela muito das cinzas do mundo entregue à coragem de lutar contra a tirania. Revela também essa ociosidade de lamparinas de verniz que era o manto de vida de uma burguesia de regime e essa sonolência que o País era e continua a ser, as sombras de estátuas na reverência aso grandes, mesmo que ditadores do Ser. 

1 comentário:

  1. Não conhecia este texto de Saint-Exupery! Muito interessante! O olhar cético que ele tem sobre a sociedade da época e de Lisboa!
    No teu comentário não deves dizer "ditadores do ser"...o tempo é um horizonte e não um estado que se possa referir a pessoas concretas...quando muito podemos afirmar que esse tempo se desvelava/revelava de "tempos sombrios" a desafiar as nossa finitude e limitações...que teremos sempre...como somos tão imperfeitos e listados na nossa tentação de omnipotência e não nos apercebemos no tempo histórico vivido dessas limitações...o problema é que continuamos a cometer os mesmos erros sob outras formas...enfim a natureza humana não muda!
    Então acordado e a trabalhar as 7h da manhã? Descansa...
    Tens trabalhado imenso...e com muita qualidade, como sempre!
    Está calor! Vamos a horta da Filu!
    Fica bem!

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