quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Livros demais

"Ler para quê? E escrever, para quê? Depois de ler cem mil, dez mi livros durante a vida, que se leu? Nada. (...) Ler não serve para nada, é um vício, um puro prazer, uma felicidade". (1)

Desde que entrámos na porta da História, se há algo que caracteriza a aventura humana são as palavras. Suporte desse material onde a linguagem organiza o conhecimento, a dúvida, a emoção e o sonho, os livros são a nossa memória. Conseguirá essa memória da palavra apresentar satisfatoriamente os sonhos do quotidiano?

Afinal que papel desempenham no quotidiano vivido de cada um a leitura e a escrita? Não serão aquelas signos materiais afastados das nossas necessidades pessoais? Na sociedade da imagem, que valor podem ter o livro e a leitura com a inevitável falta de tempo, onde a contemplação do horizonte parece apenas destinado aos que se situam à margem do sucesso virtual. A acrescentar a estas dificuldades, uma mais. Que livros escolher e quais deixar de lado, quais seleccionar, aqueles que nos «permitiriam melhor relacionar com o Universo», nas palavras de Gabriel Zaid. Como contornar este labirinto? 

O livro nasceu como produto cultural no momento e no tempo em que a difusão de novas ideias permitia organizar outros modelos sociais. O livro trouxe-nos da História esses momentos de emancipação individual. O livro e a sua difusão estão ligados à criação dessa liberdade onde cada um pode ouvir a sua respiração e onde estão dispensados os sacerdotes do templo para que fundamentem o significado das acções humanas. 

O encontro do homem com o livro é o resultado de uma acção que pretende afinal estabelecer uma «conversação» que faça da vida um caminho com significados. Afastados dessa liberdade criativa que a cultura greco-romana ou o renascimento afirmaram tão alto, vivemos num tempo absurdo em que da pior maneira verificámos que a nossa tecnologia e doutrinas económicas não souberam salvaguardar a dignidade individual. Tantos milhões de anos de História para concretizarmos uma sociedade com fundamentos de uma solidez feita de aparências. 

Neste País onde o estudo do Grego, do Latim, da Filosofia, da Arqueologia são um passatempo para lunáticos, dispensável na formação da maioria, pode-se aspirar à organização do pensamento? Um País onde sai mais barato fazer exercícios para tratar do corpo do que alimentar o espírito, onde se deslocam objectos de memória sem conhecimento, onde tudo vale apenas pelo valor funcional. Sem valorização da identidade, da diferença, um caminho de ícones de plástico, onde se dispensa ser. Aspira-se aparentemente a ideias, mas sem leitura crítica, como se fosse possível presente, sem memória. O livro, a memória, a sua humanidade está em stand by, numa fogueira de vaidades pessoais. 

O livro contém si o universo dos possíveis, encerra em si o leitor e apesar da sua magia deposita também nele e em nós,imensas fragilidades. Poderíamos comparar o livro à vindima da uva e ao seu produto, o generoso vinho. Quem o sabe apreciar não o dispensa, quem não o conhece vive afastado de uma beleza sem tempo. É verdade que o livro não regista a vida, a construção do quotidiano. Ele tal como a vindima é o produto, a colheita de um esforço humano, de uma inspiração da memória. É igualmente verdade que não poderemos ler todos os livros, nem sequer os que consideraríamos mais interessantes. E é sobretudo verdade que a natureza humana não está pensada para ser dominada por uma língua universal, numa aldeia global onde se determina tudo a todos e do mesmo modo. 

A actual crise económica e social revela como mal preparados estão os agentes do poder político, os que organizam o domínio social e económico. Tantos já prevêem o fim do livro e nenhum soube compreender o seu próprio tempo, nem os movimentos que o organizam. Tantos afirmaram o fim da História a caminho de uma felicidade garantida pelos meios tecnológicos, pela clarividência dos princípios e afinal aqui estamos tão sós de sonhos, ainda à espera do «dia inicial e limpo» , como expressava Sophia. 

Mais uma vez se comprova que a Humanidade dá-se melhor com uma Torre de Babel onde cada aldeia é um Universo, um centro de uma ideia de vida do que na vasta globalização. O homem vive na sua natureza de uma universalidade limitada. Estas fragilidades do homem, do leitor e da vida são oportunidades. Podem ser as nossas oportunidades. Elas permitem-nos compreender que a vida humana é feita de momentos. 

É o livro que nos dá essa revelação, essa relatividade de que todos somos feitos. «O livro não oferece nenhuma explicação acerca do destino do homem, mas tece uma apertada rede de convivências entre a vida e ele», nas palavras de Daniel Pennac, expressam bem o motivo de o homem pela sua mortalidade aspirar aos sonhos, às emoções e é esse é o fundamento da escrita. Esperamos assim da leitura, o que Gabriel Zaid no seu pequeno, mas íntimo livro consegue estabelecer connosco, uma «conversação». E não é isso a vida, entre a alegria e o absurdo, uma tentativa de construir um diálogo? O homem e o livro aproximam-se assim, «na definição de constelações que promovam a conversação para o bem comum», ainda nas palavras de Gabriel Zaid. As Bibliotecas são neste contexto apenas um dos instrumentos para organizar, promover e difundir esse diálogo comunicativo essencial ao Homem. O livro pode dar-nos essa intimidade do diálogo, num mundo de cegos. 

(1) - Gabriel Zaid, Livros de mais, Ler e publicar na era da abundância, páginas 49 e 116)

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