Quantos
que por aqui nasceram não gostariam de escrever este texto que é um
inédito de Sophia? Aqui fica para uma dedicação sentida à cidade das
camélias e do granito.
"Nasci no Porto.
Ali
estão as tílias enormes, as manhãs de nevoeiro, as praias saturadas de
maresia, os rochedos cobertos de algas e anémonas, as Primaveras
botticellianas, os plátanos, a cerejeira, as camélias. Ali o rio, as
casas em cascata, os barcos deslizando rente à rua nas tardes cor de
frio do Inverno. Ali, o cais da Ribeira, os rostos, as vozes, os gritos,
os gestos. Uma beleza funda, grave, rude e rouca. Escadas, arcadas,
ruelas abrindo um rosto emergindo do fundo do mar da vida. Porque ali é a
cidade onde pela primeira vez encontrei os rostos de silêncio e de
paciência cuja interrogação permanece. Porque ali é o lugar onde para
mim começam todos os maravilhamentos e angústias.
Cidade onde sonhei as cidades distantes, cidade que habitei e percorri na ilimitada disponibilidade interior
da adolescência. Descia pelo Campo Alegre, passava a Igreja do Lordelo,
seguia entre muros de jardins fechados. Através das grades de ferro dos
portões viam-se redodendros, buxos, cameleiras. Depois surgia o rio e
ao longo do rio caminhava sobre a balaustrada de pedra, até à barra até
aos rochedos onde saltam as ondas. (...)
E
o Porto onde vivi a adolescência e, em parte a juventude foi também a
cidade onde encontrei uma cultura que não vivia ao sabor do tempo e da
moda. Ouvíamos Mahler muito antes de Mahler estar na moda. Estávamos
longe de grupos literários. Falávamos pouco ou nada de avant-garde.
Líamos tanto o Proust. Líamos as Canções de Amigo, Horácio, Goethe,
Rilke, Lorca. Os concertos eram longamente escutados, religiosamente
recordados.
Sem
dúvida a cidade tinha as suas convenções, estreitezas e praxes. Mas em
contrapartida o cabonitismo e o arrivismo eram coisas raras. Porque
nasci no Porto sei o nome das flores e das árvores e não escapo a um
certo bairrismo, mas escapei ao provincianismo da capital".
Sophia, Do espólio a abrir ao público em 2016 (cedido pela família e publicado na Ler)
Imagem, de José Paulo Andrade, "As duas pontes"
in http://www.pbase.com/jandrade/image/96569584
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