quarta-feira, 20 de março de 2013

Um livro por uma casa

"Disse-lhe que me faz falta uma casa. (...) O miúdo sorriu. Terá pensado que sou tonto. Disse-me para trocar   por um livro. Uma casa por um livro. Achei tão engraçado. Comecei a rir. Os livros, que têm casas e mais casas dentro, deixam-nos cá fora. Não nos abrigam. As páginas de um livro podem muito pouco contra a tempestade. É porque não valem as casas, só valem o sonho delas, valem o espírito. Mas não habitamos o espírito, talvez sejamos por ele habitados.

As coisas estão todas ao contrário. Devíamos estar bem no corpo e rejeitar tudo quanto o viesse esconder ou envolver. Tudo o que fosse além do amor e do abraço. Devíamos ter sido inventados como feitos de pedra. Robustos. E devíamos morar simplesmente pelos caminhos, pousados de vez em quando para visitas e descanso. Pousados ao lado de quem nos deixasse feliz. E o corpo já seria a casa inteira, bastante, justa. (...) Somos todos lingrinhas e perecíveis e precisamos de tantos cuidados que até enerva. somos um bicho mariquinhas. E os livros também são mariquinhas. (...)

Os livros abrigam-nos por dentro. Mas estou fartinho de abrigos interiores. (...) Uma casa, pois, é um complemento, cada vez mais, de isto de ser gente. (...) Pensámos, eu e os miúdos com quem falava, como haveria de ser feita a troca de um livro por uma casa. E um acabou por ter a  ideia perfeita. Teria de ser um livro tão bonito e taão divertido que, alguém que tivesse casas a mais, poderia preferir ler aquela história abdicando alegremente de uma propriedade. 

Perguntei-lhes como seria um livro assim, bonito e divertido. Disseram-me:carros, corridas, raparigas, acção, praia, quartos de hotel, mães simpáticas, pais que trabalham, comidas boas, janelas abertas, primavera, flores, filhos, brinquedos, o Faísca McQueen, (...) Pensei nos meus livros, no que escrevi eu, caramba, não me falta quase nada".

Valter Hugo Mãe, "Um livro por uma casa", in JL, Maio de 2012

(Num texto interessante de Valter Hugo Mãe sobre essa nossa natureza perecível, conciliando a existência, o habitável e a procura do abrigo que o livro nos parece dar, em encontros fugazes de silêncio).

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