"Disse-lhe
que me faz falta uma casa. (...) O miúdo sorriu. Terá pensado que sou
tonto. Disse-me para trocar por um livro. Uma casa por um livro. Achei
tão engraçado. Comecei a rir. Os livros, que têm casas e mais casas
dentro, deixam-nos cá fora. Não nos abrigam. As páginas de um livro
podem muito pouco contra a tempestade. É porque não valem as casas, só
valem o sonho delas, valem o espírito. Mas não habitamos o espírito,
talvez sejamos por ele habitados.
As
coisas estão todas ao contrário. Devíamos estar bem no corpo e rejeitar
tudo quanto o viesse esconder ou envolver. Tudo o que fosse além do
amor e do abraço. Devíamos ter sido inventados como feitos de pedra.
Robustos. E devíamos morar simplesmente pelos caminhos, pousados de vez
em quando para visitas e descanso. Pousados ao lado de quem nos deixasse
feliz. E o corpo já seria a casa inteira, bastante, justa. (...) Somos
todos lingrinhas e perecíveis e precisamos de tantos cuidados que até
enerva. somos um bicho mariquinhas. E os livros também são mariquinhas.
(...)
Os
livros abrigam-nos por dentro. Mas estou fartinho de abrigos
interiores. (...) Uma casa, pois, é um complemento, cada vez mais, de
isto de ser gente. (...) Pensámos, eu e os miúdos com quem falava, como
haveria de ser feita a troca de um livro por uma casa. E um acabou por
ter a ideia perfeita. Teria de ser um livro tão bonito e taão divertido
que, alguém que tivesse casas a mais, poderia preferir ler aquela
história abdicando alegremente de uma propriedade.
Perguntei-lhes
como seria um livro assim, bonito e divertido. Disseram-me:carros,
corridas, raparigas, acção, praia, quartos de hotel, mães simpáticas,
pais que trabalham, comidas boas, janelas abertas, primavera, flores,
filhos, brinquedos, o Faísca McQueen, (...) Pensei nos meus livros, no
que escrevi eu, caramba, não me falta quase nada".
Valter Hugo Mãe, "Um livro por uma casa", in JL, Maio de 2012
(Num
texto interessante de Valter Hugo Mãe sobre essa nossa natureza
perecível, conciliando a existência, o habitável e a procura do abrigo
que o livro nos parece dar, em encontros fugazes de silêncio).
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