sábado, 15 de dezembro de 2018

Estante de leitura - luz de luz


“nem todas as coisas que existem são plenas de luz, mas todas as que são dotadas de luz, sim existem."

O mundo é uma composição de imagens, persistentemente iluminadas, formalização de écrans a expor todas as vertentes dos hábitos sociais. A luza havia de parecer, como uma forma de comunicar ideias e realidades, linhas de um sentido que fosse humano. E, no entanto existem claras dificuldades em encontrar uma luz, ou de a fazer viver em todas as coisas, ou tão só de a inscrever na substância da vida. Dificuldades geradas por um mundo, onde as pessoas estão desligadas dos outros  e de si próprios, fruto de uma devastação crescente, por onde os sentimentos de tédio e cansaºo estão presentes no curso da vida.

Essa luz que existe e não se encontra, que está mergilhada no interior das coisas. Torna-se quase opaca pela tragédia dos dias, feita de um lato sofrimento humano, uma quase "banalidade quotidiana". As imagens de um quotidiano de guerra e indiferença pode conduzir a uma sensação contínua de cepticismo, ou em sua substituição, levar a uma euforia artificial. Entre o tudo perdido e o bem absoluto, divisões morais do incompreendido revelam a construção de muros, onde falta o essencial, o homem e a sua respiração íntima.

É neste contexto que Pedro Strecht nos apresenta um livro que tenta discutir o território que se situa entre o bem e o mal, entre a luz e a sombra, de modo a superar um visão puramente biológica do homem, isto é a de ver este, como entidade relacional capaz de consigo e com os outros aceder a uma dimensão luminescente. A essa capacidade de cada um se iluminar em si e com os outros, de se saber no interior de uma luz natural e de estabelecer uma relação com o cosmos, chamou Pedro Strecht, "luz de luz".

A capacidade de construir momentos de felicidade implica uma cto de coragem, num tempo onde alguêm disse, "depois de Auschwitz não é possível fazer mais arte", o que significa reaprender o próprio prazer de existir.  Analisando diversos planos da vivência do homem na sociedade, Pedro Strecht utiliza uma linguagem de símbolos, onde a luz e a sombra identificam diferentes categorias do existir. Propõe uma articulação de planos, de onde faz nascer princípios e valores éticos, oferecendo formas positivas de vermos a vida e de a construir.

Recusando uma leitura do homem feita de antagonismos, o autor propõe um pensamento que integre opostos. ou diferenças que leve cada um a sair de si, sem o receio do outro e do inevitável fim. Situando-se no "entre", o livro propõe-nos uma aceitação da multiplicidade e da construção de um modo, que pode tornar o instante num devir. Que pode permitir o acesso à luz que nos ilumine e também aos outros. Luz que atravessa trevas, sombras, mas que não deixa de ser como "uma hélice propulsora de vida". Livro de curtas páginas, mas de grande fulgor na luz que pretende alcançar nos leitores.

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Leituras - Fala-lhes de batalhas, de reis e de elefantes


“Aparecer, manifestar-se, brilhar.
Constelar, cintilar, extinguir-se." (1)

Existem livros que ficando no domínio da Literatura, no território da ficção se elevam a uma forma de conhecimento com alguma forma de imaginação. A literatura tem nos seus domínios formas de recuperar memórias ou tão só construir biografias imaginadas de tempo e pensadas a partir de um ou mais acontecimentos. A plasticidade de acontecimentos, como forma de um conhecimento.

Fala-lhes de batalhas, de reis e de elefantes é um desses casos, onde a literatura recupera a memória dos passos de Miguel Ângelo Buonarroti, com destaque para a sua viagem a Constantinpla para o desenho de uma ponte, no chamado corno de ouro. Livro que levanta o conhecimento de figuras do Renascimento italiano, dos modos como os Otomanos administraram esse espaço, a sua civilização de sultões e vizires.

Fala-lhes de batalhas, de reis e de elefantes  constrói uma narrativa suportada em figuras que viveram no início do século XVI, Miguel Ângelo, Mesilu de Pristina, poeta referenciado na Literatura Otomana, Bayazid, sultão Otomano e Ali Paxá, seu vizir. Faz de igual modo referências à cultura do Renascimento, ao que influenciou, devido a este contacto, a construção em Roma, como a cúpula de São Pedro. Um livro que constrói uma rica espessura psicológica destas figuras neste tempo.

Dos dados documentais nasce uma atmosfera que tenta integrar um homem, o seu trabalho, o seu génio de escultor, a sua infinita curiosidade para concretizar formas materiais de beleza. Imaginação construída dentro dos arquétipos do mundo de Quatrocentos. Um homem entre duas civilizações, os sentidos de um sonho entre uma vida a desgastar-se na sua materialidade, na dependência económica do papa ou de um sultão. Um homem entre duas formas de olhar os outros, esses sonhos migrados no coração de um outro homem, sonhos frágeis a compor desejos de uma luz para a vida, para o amor. Sonhos para a construção de uma "imagem", de "uma verdade" para superar a infantil forma dos ícones dos castelos, dos templos, das lendas que animam multidões, "um véu que esconde a eterna dor da noite."

Fala-lhes de batalhas, de reis e de elefantes  recebeu o Prémio Goncourt de Lycéens (2010) e foi ainda Prémio do Livro em Poitou-Charentes (2011) e é na verdade um excelente livro para melhor entender o homem no interior de um tempo histórico.

Mathias Énard é um grande conhecedor da cultura oriental, nos seus domínios árabe e persa e revela aqui uma capacidade narrativa substantiva, em nos contar numa ficção um quadro civilizacional. Expressão retirada de Kipling, do seu Life's Handicap, a entrada do livro, a sua epígrafe, a que o livro dá uma plasticidade marcante, torna um episódio numa linha contínua da própria vida humana. Vale a pena recordá-la:

"Como são crianças, fala-lhes de batalhas,
e de reis,
de cavalos, de diabos, de elefantes
e de anjos, mas não deixes de lhes falar de
amor e de coisas semelhantes."

Fala-hes de batalhas, de reis e de elefantes / Mathias Énard ; trad. Pedro Tamen. - 6.ª ed. - Alfragide: D. Quixote, 2018. - 159 p. ; 24 cm. - Tit. orig.: Parle-leur de batailles, de rois et d'éléphants. - ISBN 978-972-20-5174-3

sábado, 22 de setembro de 2018

1984 - um livro para tempos diversos


Poucos livros são tão importantes para os nossos dias do que o 1984, de George Orwell. É hoje muito mais importante para ler nas democracias do que nas ditaduras, porque o que ele diz sobre as ditaduras totalitárias já todos o sabemos (e o sabem os que lutam contra elas), mas o que diz para as democracias, para a defesa das democracias das investidas autocráticas dos dias de hoje, cada vez o sabemos menos. O reducionismo do 1984 a um panfleto antiestalinista, ou mais genericamente anticomunista, e o seu esquecimento como uma distopia datada de há já quase 25 anos são um erro e reduzem o património escasso de grandes obras literárias e políticas, de que precisamos, mais do que nunca, nos dias de hoje.

Orwell percebeu o caminho para o mundo actual de fake news, de relativização da verdade e dos factos, da “verdade alternativa”, do tribalismo, do combate ao saber a favor da ignorância atrevida das redes sociais, da crise das mediações a favor de uma valorização da pressa, do tempo instantâneo, do fim do tempo lento, do silêncio, e da pseudopresença num mundo de comunicações vazias, ideal para o controlo afectivo, social e político. Orwell sabia que o Big Brother estaria feliz nos dias de hoje com o permanente ataque a toda a espécie de delegação de poder pelos procedimentos das democracias, ou pelas hierarquias da competência e do saber, a favor de um falso empowerment igualitário, que enfraquece os mais débeis, os mais incultos, e os mais pobres, mas dá mais poder aos poderosos, aos ricos, aos que estão colocados em lugares decisivos por nascimento, herança, ou amoralidade. Descreveu, pela primeira vez no 1984, o mundo da manipulação e geral degenerescência da linguagem, das palavras e das ideias. 

Um mundo onde quem manda reduz as palavras em circulação a uma linguagem gutural, a preto e branco, sem capacidade expressiva e criadora, mas também desprovida da capacidade de transportar raciocínios e argumentos lógicos, mas apenas banhar-nos em pathos. Ele escreveu uma distopia, nós vivemos nessa distopia. Uma das fontes do 1984 foi o conhecimento que tinha do totalitarismo comunista e em particular a sua experiência na Guerra Civil espanhola, que lhe serviu também para escrever Animal Farm. 

Mas a outra fonte importante do livro foi a sua experiência na BBC, na comunicação social em tempo de guerra e no papel que esta tinha na própria guerra como arma. Arma de propaganda, mas também arma de manipulação, através da chamada “propaganda negra” ou daquilo a que mais tarde os serviços soviéticos deram o nome de “desinformação”. Orwell conjugou estas duas fontes, de origem muito diversa, numa interpretação do valor da verdade, e da ideia de que quem controla as palavras controla as cabeças e o poder. A isto Orwell acrescentava algo que sabia estar ausente do mundo da ideologia, uma genuína compaixão pelos “danados da terra”, pelos que nada tinham, e é a eles que dá a capacidade de revolta: “If there is hope, it lies in the proles”.

Dois exemplos mostram a manipulação das palavras, que é hoje uma actividade especializada e lucrativa de agências de comunicação e publicidade, de assessores de imprensa e de outros amadores de feiticeiros na Internet, já para não falar dos serviços secretos: um, de há uma semana na América de Trump, o grande laboratório do Big Brother; e outro dos nossos anos do lixo, entre a troika e o Governo PSD-CDS. No primeiro caso, trata-se do interrogatório do candidato a juiz do Supremo Tribunal Ben Kavanaugh, em que as mesmas armas, espingardas de tiro automático ou semiautomático, são descritas como “armas de assalto” (“assault weapon”), pelos que defendem o seu controlo, ou como “espingardas de desporto modernas” (“modern sporting rifles”), como entendem os defensores da interpretação literal da Segunda Emenda, para quem o direito de ter, transportar e exibir armas é intangível.

O exemplo português é um entre muitos dos anos do Governo da troika-PSD-CDS, que começam a ser perigosamente esquecidos. Quando começaram os cortes em salários, pensões, reformas, despesas sociais, durante dois ou três dias, mesmo os membros do Governo usavam a expressão verdadeira de “cortes”. Depois, de um dia para o outro, e de forma concertada, deixaram de falar de “cortes” para falar em “poupanças”. O mais grave é que, como no mundo do Big Brother, a expressão começou a impregnar a linguagem comum, a começar pela da comunicação social, que nesses dias e nalguns casos até hoje mostrou uma especial capacidade de ser manipulada pelo “economês”. Leia-se pois o 1984, ou “releia-se”, que é a forma politicamente correcta de se dizer que se leu sem se ter lido, até porque é um livro que não engana ninguém logo à primeira frase: “Era um dia de Abril, frio e cheio de sol, e os relógios batiam as treze horas.”»

José PAcheco Pereira, "Por que é que devíamos estar a ler hoje 1984?",
 in Jornal Público, 22.09.18

sábado, 14 de julho de 2018

Leituras - A rapariga que lia no metro

"O amontoado de livros tornara-se uma presença amiga, uma sorte de edredão macio onde gostava de se instalar confortavelmente. Julgava até, depois de ter fechado a porta envidraçada atrás de si, ouvir uma espécie de gorjeio, ou melhor, uma vibração que se libertava das páginas, chamando-a. O chamamento era mais forte deste lado - não, daquele outro. Vinha da lareira obturada ou então do recanto escuro por detrás do escano. Então, aproximava, com precaução, a mão estendida para acariciar as lombadas cartonadas ou revestidas de couro gasto. Depois, imobilizava-se. Era ali. Era aquele.

A rapariga que lia no comboio, de Christine Féret-Fleury é uma apaixonante viagem pelo universo da leitura, do livro, feita como uma experiência alucinante por figuras fixas no borderline da vida. Leitura fascinante sobre as próprias possibilidades do livro, como objecto de aproximação ao real e à relação com os outros. A rapariga que lia no metro propõe-nos com os livros uma viagem tão excitante como a que nos oferece Alice no país das maravilhas, no que tem de imprevisível e de descoberta. Viagem feita de lugares, de pessoas e de experiências que se organizam em torno do livro e da leitura.

Quando conhecemos Juliette sentimos com ela a energia de uma descoberta, uma vontade de caminhar com ela nos espaços da sua aventura, nas suas interrogações, entre o desconhecido e a paixão entusiasmada pelos livros. É ela que nos conduz a uma casa no fim de uma rua quase desconhecida, onde encontramos personagens de um quase sonho. Soliman, Leónidas e Zaide são figuras que vivem entre uma aproximação à realidade e um permanente sonho feito de literatura, esperança e ternura.

Na tentativa de superar a rotina e um emprego medíocre, Juliette sonha quotidianamente na observação dos passageiros de uma linha de metro de Paris. Nessa observação dedica-se sobretudo aos que lêem, tentando nisso adivinhar qualquer sopro capaz de a iluminar a ela própria. Nessas viagens, como em Alice no país das maravilhas, Juliette  encontrará um local onde descobrirá personagens aqui conduzidas pelo amor aos livros e por uma ideia de oferta aos outros através das palavras.

No encontro alucinante com Soliman, ou Leónidas, Juliette encontrará uma forma de dar expressão, de encontrar o leitor para um livro, aquele capaz de responder às suas necessidades. Na imensidão do mundo, nos instantes eternos de encontro com o belo, Juliette dará forma a essa entrega, a essa dádiva com os outros que será materializada no Yellow Submarine. No fundo,  as palavras para dar voz à memória, nessa caminhada sem fim que é o tempo. A rapariga que lia no metro é um livro fascinante, com a bondade de colorir a melancolia, uma iluminação em tempos de um apagado romantismo.

sábado, 21 de abril de 2018

Leituras - As mães da Síria


Nenhuma estrela indicou a direcção.” (1)

A terra morre todos os dias. Toda esta terra morre todos os dias. Os anjos já se esqueceram da sua voz e não há pontos luminosos que contenham o corpo no recolhimento da sua materialidade. Não há lugares sagrados, as ruas perderam o seu caminho de rosas e todo espanto são as lágrimas de crianças, ou as asas quebradas de uma águia.

 A claridade abandonou as águas, os cedros são árvores queimadas e nem os peixes sabem como o vento inclina as águas, como os seixos se tornaram apenas pó preto. As avenidas de oliveiras, essa linha que ornamentava o Mediterrâneo de verde e fazia circular as searas, como campos a dobrar encostas. morreram em túmulos de guerra.

A terra morre todos os dias, as palmeiras já não entronizam Césares, o sal são apenas lágrimas em mãos vazias, todos os pássaros caíram em túmulos sem vento. Onde ficaram as mesas iluminadas de azeite, ou a oração do dia que enternecia as crianças e os antigos com as tardes compostas de folhas de laranjeira? Nas cidades das mil e uma noites, das romãs já não sobra nenhuma luz e só num distante além, os planetas ainda poderão ser uma comunhão com o esquecimento, com a morte das mães da Síria.

O que pode a História dizer de uma tragédia, ela que compõe a existência como um âmbar abstracto de esquecimento? A História alimenta-se de discursos, narrativas à beira de um tempo dividido, não tem fundamentos explicativos que separa o todo, o fundo do poder, da transitoridade da vida. A História não sabe explicar as lágrimas suspensas das crianças, como rios a encher asas de anjo, a adoemecê-los de tristeza. “O trágico é um estado preparatório da profecia.“, disse Walter Bemjamim, o que significa que é a alegoria, o poema, a linguagem da desarmonia a construir o sorriso desfeito, ou uma promessa sobre o instante.

O poema e a alegoria são as linhas desfeitas do que a linguagem não sabe explicar nos momentos finais, do corpo sem espaço, das lágrimas, sem vulto. A História faz registos, indica o número de crianças perdidas, fotografa a perda das mães, a ruína das casas, os campos quimados, mas não é capaz de fazer a geografia íntima da dor, do corpo, já sem linguagem, encostada às visões de profetas de esquina.

Apenas a alegoria e o poema permitem chegar ao ponto queimado das árvores, ao reduto da morte individual, como uma palavra do deserto, como um deus que já não é santificado. As mães da Síria é um largo poema sobre uma tragédia humana de um local, mas também de quaqluer local, pois toda a terra se tornou um fim esquecido. “A terra é toda a Síria / A Síria é toda a terra” (1), uma metáfora simbólica a renovar o sentido, a utilidade das palavras na alienada modernidade. 

Numa terra desolada, “onde o tempo terá dispensado todos os pássaros“, que linguagem pode explicar a destruição da vida, a individual perda de rostos a perderem as suas lágrimas em túmulos sem nome. A memória podia ser a conquista de um amor ausente, mas em todos os dias que se perdem estas vozes, apenas sabemos relatar, a historicidade do sofrível, a geografia do reconhecível que não sabemos exprimir e a nossa voz morre em segundos de inexprimível, como heróis irrelevantes.

O poema. É ele que conduz uma alegoria. É ele a esperança de qualquer luz, como aquela que se ateia “no rebordo de uma circunferência de giz”, uma esperança de anjos caídos. O poema desenha um particular e faz dele uma universalidade, ultrapassa a História por dentro, informando esta da substância dos pássaros mortos, em oliveiras incendiadas, da água que fez desaparecer os peixes. É o poema que nos diz que a História é feita de cultura e de barbárie, é essa a singular substância de uma civilização humana.

O poema descreve os sinais da fragilidade humana e sugere a esperança de um sentido. A linguagem surge-nos não como, a forma de nomear as coisas, mas no seu reduto mais ínfimo, o de salvar na memória, o sentido perdido e individual do que se foi, a breve esperança, “da flor de laranjeira”, ou a de “um jarrinho de azeite”, essas linhas e esses perfumes que iluminavam os caminhos do sal, um sentido do saber. É ainda uma esperança, mesmo com a geografia das aves morrendo calcinadas, em lágrimas de pó e sangue.
(1) – Isabel Aguiar. (2017). “VIII”, in As mães da Síria. Lisboa: Licorne.

quinta-feira, 19 de abril de 2018

O gueto de Varsóvia - a coragem


"Shuddering I shall cry:
what for and why
did my people die?"
 (Itzhak Katzenelson   I Had a Dream) 

É uma história amarga, a maior delas. É uma narrativa impossível de explicar, pois não há nela nenhuma racionalidade, apenas a emoção que uma selvajaria animal ainda se faz transportar dentro de algo humano, uma humanidade clonada de formas sem espírito. Passou-se ao som de criações elevadas da capacidade de sublimar a vida, a música, a arte e a literatura. 

É uma história mil vezes repetida, mas nunca a perceberemos verdadeiramente, nunca saberemos explicar porque a morte de milhões de pessoas pôde ser uma alegria, uma sinfonia de vontades vitoriosas. Nunca compreendermos esse esquecimento, essa indiferença da cultura ao sofrimento e à morte que a grande parte da sociedade alemã protagonizou.  E pouco temos aprendido, pois residem entre nós, nas coloridas televisões, nas rádios de risos de plástico a construção por mugglins, de pensamento que diz que nos dizem que a memória é uma ocupação de falhados. Dessas vitórias do empreendorismo, feito do utilitarismo com que novos iluminados habitam no conforto dos gadgets sem ideal humano.

Mas façamos um esforço, reconheçamos a esta meia-dúzia de sonhadores o seu grito e o seu exemplo. O da palavra contra a violência, a explicação, o olhar que procura conhecer, o do testemunho para que se saiba e se conheça, pela poesia, pela crónica, pelas imagens, pelas narrativas. E o seu grito final o de quem compreendeu que o impossível por ser humanamente inconcebível pode ser uma opção dos que vivem com os olhos na morte.

Após dois mil anos de sujeição, de incompreensão, alguns judeus perceberam que apenas lutando poderiam gritar o que sentiam, e tentar, apenas tentar mudar a sorte talhada nos campos de extermínio a que uma sociedade alemã, promessa de um desenvolvimento económico decidia encolher os ombros. Não dizia Heiddeger, o filósofo da imanência do ser que "as mãos de Hitler eram de uma beleza insuperável"?

Lembremos pois esses poucos, que nos mostraram no gueto de Varsóvia que a luta é a melhor forma de defender o que somos, e que embora divididos como o estavam em grupos e movimentos souberam lutar, heroicamente, na Passover, por uma dignidade contra os que apenas os queriam aniquilar. 

Fazem hoje setenta e três anos sobre esse levantamento no gueto de Varsóvia e essa luta de grandeza pela dignidade humana. É possível conhecer esta luta e o que foi a vida no gueto de Varsóvia, naquilo que foi o trabalho desenvolvido pelo historiador Emmanuel Ringelblum e que permitirá mais tarde criar o HolocaustResearch Project. Pela sua vertente pedagógica e informativa, também de grande relevo o UnitedStates Holocaust  Memorial Museum.   

quarta-feira, 4 de abril de 2018

Leituras - Silêncio


“Ninguém é pátria, todos o somos.” (Jorje Luís Borges)

Silêncio é um livro raro que junta em um pouco mais de cinquenta páginas imagens, poemas, ideias, pessoas de um Planeta na sua ampla diversidade. E é ainda uma composição musical desse vasto e diverso mundo. Com imagens de João Francisco Vilhena, pequenos textos / poemas de António Mega Ferreira e músicas de Pedro Oliveira, Silêncio é um livro que propõe uma viagem aos seus leitores.

Fazendo uma escolha de lugares onde vivem pessoas num sentido minimalista da paisagem, o livro procura encontra os espaços e as emoções para essa definição possível do silêncio. Propõe-nos uma viagem em diferentes sentidos, ao tempo, ao espaço, à construção da paisagem e da memória em nós.

Silêncio é uma viagem a espaços, em que eles próprios se constroem dentro do silêncio com os objectos que ficaram dos despojos do tempo, em mundos quase perdidos na ausência de uma palavra e de uma memória. É uma viagem a momentos inaugurais da vida geológica, como um mundo acabado de nascer ou à pequena luz que dá formas ao negro, em casas de silêncio. 

Silêncio propõe-nos uma viagem para recuperar o esquecimento e para compreender o que ficou de uma memória, ou o que fica da paisagem em nós. É uma viagem para entender substantivamente como o real se desfaz de memória e como é importante construir uma linguagem para dar conta "da obscenidade do mundo". É, enfim um livro para viver o sonho antigo da Terra e fazê-lo nascer numa janela de azul, com o corpo do silêncio.

Silencio é um livro raro, pois se todos eles podem ser uma pérola nessa construção essencial de uma conversação, este em particular assume uma dimensão de grande valor simbólico, pois remete-nos para as latitudes da palavra na respiração das coisas. Diz-nos em diferentes modos que aquilo que habitamos no pó de estrelas dos cometas é uma porção de descoberta e construção em cada um.