sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Leituras - O Irmão Lobo

The tast of love is sweet
When hearts like ours meet
I fell for you like a child
      Oh, but the fire went wild. (1)

Somos continentes à deriva num espaço planetário, onde respiramos, vivemos e emergimos em territórios mergulhados na memória e em marés de ocasos. Criamos mundos em oceanos de desencontros, na ameaça "rudimentar" dos caçadores de metal amarelo e nos espelhos grotescos dos homens-mocho. 

Somos ilhas de afectos à procura do mar azul no horizonte, à espera de contornos de luz que realize dias, onde sejamos um território de fraternidade. No mar que nos envolve por quanto tempo seremos uma unidade, um sorriso aberto capaz de suster um abrigo de memórias?

Irmão Lobo é uma narrativa sobre os fragmentos que a tempestade a que somos sujeitos tantas vezes, nos faz percorrer em novos territórios, desabrigados e desamparados. E neste processo em que somos arrastados, para longe das nossas referências, da nossa respiração, do nosso oceano e afecto, que valor comum usaremos para construirmos o quotidiano?

Irmão Lobo é um livro fascinante, uma proposta de leitura para pensarmos como reconstruir o que liga as pessoas num espaço comum. Que imagem, que artefacto, que memória, que valor seguro para alimentar no coração, a esperança, que na vida ainda permita esse momento único - flutuar sempre, como as algas suspensas no azul.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Um governo de medo e mentira (V)

A linguagem é uma das formas de dominar e manipular a informação.Quem não o compreende, nada sabe das sociedades contemporâneas e do que foi o século XX. Os senhores do irrevogável e os seus fiéis apoiantes definem uma linguagem que associa "direito adquirido" a uma forma de um qualquer vilipêndio. Nessa linguagem, repetida por muito pensamento débil, "os direitos adquiridos" não são mais do que privilégios inaceitáveis, que poêm, segundo dizem a "equidade".

(Se parassem para pensar veriam que não há equidade nenhuma, e meditariam um pouco sobre por que razão se fala de equidade e não de igualdade. (...) Claro que os "direitos adquiridos" são essencialmente do domínio do trabalho, dos direitos do trabalho e dos trabalhadores, activos e na reforma, e não se aplicam a outros "direitos" que esses são considerados intangíveis na sua essência. Por exemplo, os contratos com as PPP e os swaps, ou a relação credor-devedor, são tudo contratos que implicam a seu modo "direitos adquiridos", mas que, pelos vistos, não podem ser postos em causa.

O meu ponto neste artigo é que o Governo e os seus propagandistas, ao porem em causa os "direitos adquiridos" quando eles se referem a pensões, salários, direitos laborais e emprego, estão também a deslegitimar os outros contratos e a semear a "revolução".  Assim mesmo, a "revolução", defendendo uma sociedade em que o Estado e, mais importante, a lei ou a ausência de lei em nome da "emergência financeira", não assegura qualquer "princípio de confiança", ou seja, os pactos feitos na sociedade, pelo Estado, pelas empresas, pelas famílias, pelos indivíduos. 

Esta lei da selva é, espantem-se ó defensores da ordem, outro nome para a "revolução", a substituição do Estado de direito e da lei pela força, seja a da rua, seja a do poder sem controlo, seja a da imposição arbitrária assente em decisões conjunturais que passam por cima da "confiança" contratual que permite uma sociedade equilibrada, pacífica, com institucionalização dos conflitos, com mediação dos interesses, e com o funcionamento... de uma economia de mercado.

 Ao porem em causa o cumprimento dos contratos com os mais fracos, os que menos defesa têm, eliminando qualquer "princípio de confiança" ou "direito" livremente adquirido entre as partes, abrem o caminho para que se pergunte por que razão é que os contratos das PPP são "blindados" (ou seja são "direitos adquiridos") e não podem ser pura e simplesmente expropriados, em nome da "emergência financeira".  Eu não estou a defender essa expropriação, mas apenas a dizer que se o Governo e a sua máquina de repetidores entende que pode confiscar salários, empregos, carreiras, horas de trabalho, e direitos legalmente adquiridos pelas partes, e aí não se preocupa com a "blindagem" (que foi o que o Tribunal Constitucional garantiu, mesmo que precariamente), torna igualmente legítimo que se defenda o confisco da propriedade e dos contratos, a começar por aqueles que unem credores e devedores, ou partes num swap ou numa PPP. Ou seja, um governo que assim actua para os mais fracos comporta-se do mesmo modo dos que querem "rasgar o memorando".

 Ora, eu sou a favor de que se cumpra o memorando, realisticamente adaptado à mudança de circunstâncias, que se negoceiem e não se confisquem as PPP, mas que ao mesmo tempo se tenha a mesma atitude em relação aos outros contratos, procedendo também aí a verdadeiras negociações e não a diktats, e procurando soluções que possam manter a "confiança", como seja, por exemplo, encontrar modos de transição, diferenciações entre os contratos do passado e do presente, avaliação de custos e situações. Ora é isto que o Governo desde o dia um do seu mandato nunca fez, por ignorância, incompetência, dolo e ideologia.
  
Tomou um caminho único, defendeu-o como único, acrescentou problemas novos aos que já tinha, começou arrogante e acabou a andar para trás, para a frente, para o meio e para cima, tentando remediar o que tinha estragado. Sempre que contrariado quis vingar-se, garantindo que os que uma decisão constitucional protegia iriam pagar um preço ainda maior, se possível, ou servir de pretexto para punir todos. E desde sempre mostrou desprezo pela lei constitucional, porque isso lhe permitia soluções mais fáceis, mais imediatas, até porque os seus alvos eram os que menos poder tinham.

O resultado foi romper o tecido social como ele nunca tinha sido rompido desde o 25 de Abril, semeando a discórdia e a divisão, sem qualquer resultado adquirido e sustentável. Eu ouço o rumor das objecções. Que não são a mesma coisa, que se trata de coisas de natureza diferente, propriedade e salários, emprego e contratos, que os tribunais decidiriam contra o Estado, levando a indemnizações muito maiores do que os ganhos, de que secariam as fontes de financiamento externo, etc., etc. Tudo verdade, mas tudo também verdade para o direito de não ser despedido sem justa causa, ou de não ver a sua reforma cortada retroactivamente.

 É por isso que os nossos semeadores de cizânia e de "revolução", da força, de uma sociedade dúplice em relação aos contratos que cumpre ou não cumpre, deviam ponderar nas palavras que originaram o pequeno escândalo, habitual nas redes sociais, vindas de um jovem deputado comunista que ainda não aprendeu a "linguagem de madeira" dos comunistas actuais: "A corja que despreza a Constituição que se ponha a pau. É que se o meu direito à saúde, educação, pensão, trabalho, habitação, não vale nada, então também os seus direitos à propriedade privada, ao lucro, à integridade física e moral deixam de valer! E nós somos mais que eles". O homem foi tratado de "besta", "hitleriano", "aspirante a ditador", "parecido com os fascistas", tudo isto ipsis verbis.

 Mas o que incomodou na frase foi que ela contém implicitamente uma enorme verdade: é que o "vale tudo" só para alguns é infeccioso para os outros.  Ou seja, por que razão é que tenho que aceitar que o Governo me pode confiscar o meu salário e despedir sem direitos, por livre arbítrio de um chefe de uma repartição, ou diminuir drasticamente a minha pensão, agora que já não existo para o "mercado de trabalho" e sou completamente dependente, ou condenar-me ao eufemismo do "desemprego de longa duração", ou seja tirar-me muito mais do que 60% ou 70% da minha "propriedade", que não são acções, nem terras, nem casas, nem depósitos bancários, e quem tem tudo isso não pode ver a sua propriedade confiscada num valor semelhante ao que eu perco?

E aí, ironia das ironias, teríamos o Tribunal Constitucional, com os aplausos do outro lado, a defender a propriedade e a condenar o confisco, como deve fazer.  

José Pacheco Pereira, "Contratos para cumprir e contratos para violar" - 2ª parte
in Público. 07.09.2013 

domingo, 31 de agosto de 2014

Leituras - Os Maias


"Ega queixou-se do país, da sua indiferença pela arte. Que espírito original não esmorecia, vendo em torno de si esta espessa massa de burgueses, amodorrada e crassa, desdenhando a inteligência, incapaz de se interessar por uma ideia nobre, por uma frase bem feita?
- Não vale a pena, Srº Afonso da Maia. Neste país, no meio desta prodigiosa imbecilidade nacional, o homem de senso e de gosto deve limitar-se a plantar com cuidado os seus legumes. Olhe o Herculano..."  (pág. 326) 

Leituras - Sonhos azuis pelas esquinas

venho dizer destas ruas que o sol aperta, e as sombras e os panos e as tranças nas meninas que passam - crianças que olham o mar com a simplicidade das pedras, aqui onde todas as varandas penduram ausências de gentes por regressar. os pássaros voam parados, suspensos e próximos, dando sombra às árvores e graças ao céu azul. 

vejo telhados sobre as pedras e pedras sobre a ilha, mas o chão respira uma frescura humana, os panos vestem as pessoas e as pessoas buscam negócios de regateio. chega um barco cheio de palavras caladas. (...) mais tarde a noite dará voz às sombras, as sombras serão calmaria e escuridão. as árvores beijarão os pássaros. os dedos hão de alcançar um torpor de mansidão. (...)

o apito de partida é o sinal de chegada àqueles que decidem ficar.
é de tarde ainda e quase noite: são os pássaros que o dizem. no céu não existem lágrimas; chegou a lua; as árvores adormeceram e sinto no ar, nos restos desta tarde senegalesa, um arfar de madeiras. não vejo canoas, sinto apenas a sua dança, um embalar de braços e ondulações, uma cantoria de remos, um poema molhado no sal.

quero a lua sobre a mesa - junto ao peixe, ao molho, ao arroz que devolve à minha refeição o branco do luar. quero conchas rumando ao meu quarto vazio, quero lençóis plenos de uma maresia fresca - para que a noite resulte e, depois dela, nas frestas do meu lençol branco, a madrugada possa vir sorrateira aprisionar-me em mim.

quero um grilo calado, um pirilampo em sereno apagamento. vozes para voos rasantes, ou uma luz negra que, sem acordar, acabasse por adormecer. (...)

pela manhã, vi o sol no mar e as ondas do meu olhar. uma saudade amarela abateu-se sonre mim e eu ri - porque era cedo e porque as nuvens não tinham chegado ainda. havia um anzol no meu sorriso.
vi os homens perto do cais e as ondas por trás e os imbondeiros erto das crianças que esquivam as pedras de sorriso aberto.

(Os lugares que habitamos nem sempre são o que queremos ser e vamos por cidades onde queremos ser mais perto de nós, ver a luz distante em cada porto e os sonhos azuis, na cor imensa que faz recordar as possibilidades de todas as histórias. Uma viagem por cidades e por aquilo que mais precisamos, estar dentro de nós com o sonho na respiração).
Ondjaki, "Gorée", in Sonhos azuis pelas esquinas

sábado, 30 de agosto de 2014

Leituras - A pomba

"E só a consciência deste poder simbólico, que o imbuía de orgulho e dignidade, que lhe dava força e resistência, que o protegia melhor do que a atenção, a arma ou o vidro blindado, só esta consciência permitira a Jonathan Noel conservar-se de pé nos degraus de mármore, à porta do banco, e exercer a sua vigilância sem medo, sem duvidar de si próprio, sem a menor sombra de descontentamento e sem uma expressão enfastiada no rosto durante trinta anos, até esse dia. (...)

Aquela arrogância e aquela segurança sólidas que antes adivinhara na pessoa do vagabundo tinham-se insinuado nele como metal líquido, tinhamendurecido e formado uma armadura interior e tinham-no tornado mais pesado. Doravante já nada o poderia abalar, já nenhuma dúvida o poderia fazer hesitar. Atingira a serenidade esfíngica. Em relaçao ao vagabundo - quando o encontrava ou o via sentado em qualquer sítio -, experimentava apenas aquele sentimento a que geralmente se chama tolerância: um misto muito vago de repugnância, desprezo e compaixão. O homem já não o perturbava. O homem er-lhe indiferente. (...)

Sim, pode dizer-se que através dos seus olhos Jonathan já não recebia uma verdadeira imagem do mundo exterior, era como se os raios luminosos seguissem o caminho inverso, e os olhos só lhe servissem de portão de saída, para projectar no mundo as suas alucinações grotescas. (...) Como se ele Jonathan - o u oque dele restava -, não passasse de um minúsculo gnomo engelhado, metido na gigantesca carcaça de um corpo estranho, não passasse de um anão indefeso, preso no interior de uma máquina humana demasiado complicada e que já não conseguia dominar e governar à sua vontade, mas que era governada por si mesma ou por quaisquer outras forças, se é que alguma coisa a governava. "

(Uma fábula sobre os aparentes alicerces da vida das pessoas, das instituições e do poder simbólico que decorre da consciência e da forma como se assume uma função de esfinge ou de marioneta. Um pequeno livro sobre as armadilhas constantes com que o quotidiano nos absorve e a fragilidade em contacto muito íntimo sobre como o mundo nos olha e como o quotidiano está cheio de ilusões).

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

O Perfeito sentido



"(...) He said Mama
The President's a fool
Why do I have to keep reading
These technical manuals
And the joint chiefs of staff
And the brokers on Wall Street said
Don't make us laugh
You're a smart kid
Time is linear
Memory is a stranger
History is for fools
Man is a tool in the hands
Of the great God Almighty
And they gave him command
Of a nuclear submarine
Sent him back in search of
The Garden of Eden
 
 
Can't you see 
It all makes perfect sense
expressed in dollars and cents
Pounds, shillings and pence

 
Oh, can't you see 
It all makes perfect sense
expressed in dollars and cents
Pounds, shillings and pence. " - Roger Waters - "Perfect Sense"


Goethe

."..quando vejo que toda a actividade se esgota na satisfação de necessidades, cujo único propósito é prolongar a nossa pobre existência e, ainda, que toda a tranquilidade em relação a certas questões não passa de uma resignação sonhadora, pois as paredes que nos aprisionam estão cobertas de formas coloridas e perspectivas luminosas… isso tudo, (…), me deixa mudo. Volto-me para dentro de mim mesmo e encontro um mundo! Mais pressentimentos e desejos do que de raciocínios e forças vitais. E, então, tudo flutua ante meus olhos, sorrio e, sonhando, penetro ainda mais neste mundo…" (1)

Johann Wolfgang von Goethe é um dos marcos fundamentais da literatura contemporânea que atravessa a passagem do século XVIII e XIX. Goethe desenvolveu uma obra de grande valor cultural, tendo feito uma síntese feliz e essencial entre o iluminismo e o romantismo. 

Nasceu a vinte e oito de Agosto em Frankfurt, tendo desenvolvido uma obra de escrita e de pensamento, tendo produzido, romances, peças de teatro, poemas, escritas autobiográficas e reflexões diversas sobre a arte, a literatura e as ciências. Goethe é com Schiller um dos grandes representantes do classicismo como movimento cultural, mas também como princípio gerador de possibilidades de vida. 

Nascido numa família abastada, estudou em Leipzig Direito, tendo optado por se dedicar ao desenho e à gravura. No regresso a Frankfurt volta ao estudo de Direito, onde recebe influências diversas, com destaque para Johann Gottfried Herder que o introduz em autores diversos e no estudo da literatura.  Em 1771 focaliza-se na poesia e em 1774 publica Werther, que é um sucesso em toda a Europa e que reflecte episódios pessoais. Publica Os anos de aprendizagem de Wihlem Meister. A partir de 1786 viaja pela Itália e os valores do classicismo e da antiguidade irão influenciar a sua obra. Já no século XIX publica As afinidades Electivas, Fausto e a Teoria das cores.

Em Goethe assiste-se ao desenvolvimento de um conceito essencial da cultura alemã que se perderia na euforia de medo do século XX - "O bildung". Conceito que explora a ideia de "auto-formação", no sentido de que cada um deve aperfeiçoar a sua personalidade, não apenas num conceito enciclopédico, como o pensavam os iluministas, mas procurando uma elevação espiritual, fazendo aperfeiçoar as nossas emoções contribuindo para um indivíduo mais consistente do ponto de vista moral. 

A formação consistente do ser humano, no sentido que o que nos tornamos individualmente contribui para uma responsabilidade social. Visa-se a procura de uma pureza em clara oposição ao puro utilitarismo do quotidiano. As ideias de Gothe que Thomas Mann desenvolveu em A montanha Mágica e que deu continuidade na ideia de nobreza de espírito é um dos fundamentos de uma sociedade civilizada que o século XX ignorou e que presentemente assistimos a formas pavorosas de continuidade, sem qualquer brilho de dignidade humanas.
(1) Gothe, Werther, Guimarãe Editores.
Imagem (Jardim em Viena - via Goethe - Institut)