
Sempre foi um mundo que valorizou o trabalho de uma forma diferente do que acontecia em Lisboa. Era a cidade das grandes fábricas. As grandes fábricas têxteis estavam no Norte, deram o nome a clubes de futebol – Paranhos, Boavista. Falo de fábricas com milhares de trabalhadores, típicas do período de crescimento da Revolução Industrial. O Porto é uma cidade do trabalho, quer nas antigas corporações quer nas antigas tradições, ainda muito marcadas pelos nomes nas ruas. Muitas igrejas, muitas instituições têm a marca do trabalho corporativo, mas a cidade também teve esse papel. O Ramalho Ortigão escreveu que no Porto não se conseguia andar meia dúzia de metros sem encontrar uma tabuleta de uma associação mutualista.
Na própria conjugação do movimento operário, é uma cidade muito mais socialista do que anarquista, enquanto em Lisboa havia uma tradição forte de anarcossindicalismo. Acima de tudo, tem uma burguesia liberal que esteve no cerne de todo o processo do liberalismo novecentista. Não foi por acaso que D. Pedro deixou lá o coração. Quem conheça a História do Porto sabe que é uma cidade que resistiu violentamente ao Estado Novo, como os grandes combates de 1927. Foram no Porto os grandes comícios da oposição: o comício do Norton de Matos [janeiro de 1949] e a receção ao Humberto Delgado [maio de 1958] que é gigantesca, a cidade sai à rua. Não há paralelo, esse comício mudou toda a história da campanha do Delgado, mudou toda a história política a partir de 1958.
É uma cidade com as suas instituições, os seus clubes, o Ateneu, um certo tipo de tradições culturais de uma elite fabril, industrial e ligada à imprensa – O Primeiro de Janeiro e O Comércio do Porto têm essa origem. Muito da vida da cidade faz-se de cima para baixo e de baixo para cima. Isso leva a que o Porto tenha uma respiração de liberdade que não veio com o telégrafo nem veio de França. Ainda hoje, é a cidade que tem o trabalho e o sacrifício pelo País no nome e no símbolo de tripeiro, e que se reconhece nesses valores. Durante o salazarismo, muitas instituições universitárias do Porto fecharam e as que sobreviveram tiveram uma vida muito difícil. Mas havia escolas com uma grande repercussão nacional – Engenharia, Medicina, Ciências, Arquitetura, Belas-Artes.
No Porto estão alguns dos primeiros edifícios de arquitetura moderna, muitas vezes feitos por pessoas que ganhavam dinheiro na indústria e que eram mecenas de artistas. Nos anos 1920, construíram-se cópias da arquitetura social de Viena. Junto da casa do Eugénio de Andrade, quando ele morava no 111 da rua Duque de Loulé, havia um grande bairro feito a partir das ideias da arquitetura socialista, uma espécie de falanstério. E havia vários desses. E depois havia as “ilhas”, outra realidade muito associada à industrialização rápida, aí sim, mais pobres. Eram uma solução de emergência, especulativa, em relação à pressão industrial, para albergar um número muito significativo de operários que vinham das zonas rurais do interior. Algumas epidemias de cólera e de tifo tiveram aí o seu desenvolvimento e o salazarismo viu-se na necessidade de criar os bairros sociais que reproduzem o fenómeno das “ilhas” para os dias de hoje.
O Porto é uma cidade liberal mas não jacobina. Lisboa é mais jacobina do que liberal, na sua história política e social. Eu nunca deixei o Porto. Havia umas personagens do teatro japonês que andavam sem nunca levantar os pés porque se o fizessem era sinal de que perdiam o contacto. E eu também: os meus pés estão lá sempre, sempre em cima daquela terra, é lá que me sinto bem.»
José Pacheco Pereira, "O Porto poderia ser uma cidade de Thomas Mann"
Revista Ler - Julho/Agosto de 2013
(Imagem - copyright: Ah! Porto 2011)
(Imagem - copyright: Ah! Porto 2011)
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