segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Leituras - Carson McCullers | O coração é um conquistador solitário

 “Aproximou-se ainda mais do mudo e baixou a voz, num sussurro embriagado: – E porque será? Porque é que persiste este milagre da ignorância? Por causa de uma única coisa: conspiração. Uma conspiração pérfida e imensa. O obscurantismo.

Carson McCullers escreveu nos anos quarenta um livro que retrata todo o desapontamento, toda a angústia de universos inteiros que choram e lutam por uma vida digna. Construído sob a atmosfera social e económica da América sulista dos primeiros anos do século XX, O coração é um conquistador solitário é um libelo sobre as injustiças sociais, sobre uma forma sem brilho, que demasiadas vezes pessoas vivem, nesse desconforto que são vidas sem futuro.

   Um conjunto de personagens desfilam desejos, esforços, caminhos sem futuro, numa ideia de indefinição das suas vidas, de algo concretizável, a que não chegam, embora tudo deem para serem amados e compreendidos, tentando o emprego, o sonho, a amizade, a integração num meio, a sociabilidade que dê sentido às suas vidas.

  Singer e Antonopoulos, dois surdos-mudos que se tentam organizar numa forma de vida, do mais simples possível, da coerência de algum sentido às suas existências, da amizade capaz de construir um quotidiano de significado. A comunidade, os outros, onde todos os gestos não fazem sentido, quando não partilhamos um sentido de pertença. Biff, Jake Blount e o médico negro, Drº Copeland, a luta por uma vida acima das dificuldades da sobrevivência, os gestos antigos por uma luta de direitos e de dignidade humana.

   Mick, o sonho interior, a imaginação dentro da cabeça, a que supera todo o real adverso e insensato. Willie e Portia, entre os caminhos de uma sociedade sem justiça, a alienação moral da comunidade negra e a família ainda e o que pode ser neste mundo de fome e dívidas contínuas.  O coração é um conquistador solitário é um livro sobre a natureza humana, os bloqueios do obscurantismo que se propaga como uma doença. A doença da civilização, onde ficamos sozinhos em cada respiração, em cada sonho.

   Escrito apenas com vinte e três anos por Carson McCullers, The heart is a lonely hunter, ou o coração é um conquistador solitário é dos marcos da literatura do século XX. Carson McCullers, a sua obra, a sua vida é o mundo e aquilo que não se compreende e são as pessoas, todos aquelas que pisam territórios de fim do mundo, onde a timidez, o pudor impede os sonhos mais básicos, os mais simples de um fazer humano. As suas palavras são o quadro de um isolamento das pessoas dentro de si, com os outros e toda a intolerância moral que negros e mulheres sofreram numa América sem fim. As suas palavras maiores ficaram em quatro livros, O coração é um conquistador solitário, A balada do café triste, Relógio sem ponteiros e Reflexos nuns olhos de ouro, entre contos e outras narrativas. As suas palavras são um retrato de seres abandonados, mas são mais do que isso, são o espírito livre que se preza de narrar injustiças e com elas encontrar qualquer outra palavra, qualquer coração que possa construir uma luz, ainda que noutra cidade, ainda que noutro país.

 

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Leituras - Herman Hesse | O último Verão de Klingsor

“(…) e se pude dar um sentido à minha existência, isso só foi possível através de uma inversão e uma introversão radicais, pela despedida de tudo o que conhecia até então, através de uma tentativa de me colocar entre os anjos.” (pág. 113)

Os primeiros anos do século XX edificaram o fim de um tempo, que tinha sido uma sociedade, que em muitos aspetos ainda procurava um sentido de harmonia, onde as possibilidades e os sonhos ainda tinham lugar. A incerteza e a dúvida, a degradação da vida humana, a anarquia e o caos nasceram amplamente no século XX, nas vésperas dos anos vinte de novecentos.

  A arte de viver, a valorização do belo, a sensatez e a nobreza de espírito foram sendo valores em queda, princípios que o século XIX tinha vivido, na sua própria memória. Com o novo século algo se rompe e o mundo que se vê nascer é de um horror pela violência industrial, com que as guerras introduziram a morte e a degradação da vida humana.

  As democracias iniciadas em diferentes locais da Europa sob a forma de repúblicas constitucionais tinham em si dificuldades de organização que tornaram muito difícil responder às contradições da industrialização emersas entre as novas ideias socialistas, a pobreza do operariado e o enriquecimento de uma burguesia ascende em poder económico e político.

 O Último Verão de Klingsor é uma de Herman Hesse, datado de 1920 e é um livro com muitos elementos autobiográficos, pois ele responde como um retrato desse mundo perdido, logo no início da segunda década do século XX, é o testemunho da perda dessa paisagem e ao mesmo tempo enuncia uma das formas possíveis de sobreviver a esse caos. História de um pintor e da sua procura por algo que possa permanecer, ou tão só na capacidade de entender o efémero, O Último Verão em Klingsor é uma visita a uma lembrança, a de um Verão concreto que busca no natural, ainda uma forma de libertação para criação de algo novo, diverso que libertasse o coração dos desastres vividos com o conflito de 1914-1918.

 A perda desse tempo e o regresso a uma sociedade já com outras pessoas, com outra geração enunciava essa dificuldade de encontrar um sentido para o mundo, tal como tinha sido conhecido. A intranquilidade e a relatividade do tempo tornavam difíceis recuperar valores antigos, como um certo sentido aristocrático da vida, ou a procura de novas formas do belo atirou essa geração para uma dificuldade de integração nesse novo mundo formalizado em caos e indiferença. O que Herman Hesse nos dá com este livro é a tentativa de realizar essa viagem e construir algo novo. A capa escolhida para esta edição, justamente os campos dourados de Vincent Van-Gogh expressam bem essa necessidade de viver entre um mundo desajustado de valores e ingrato para o Homem, para a sua liberdade criativa, enquanto ser individual.

O Último Verão de Klingsor / Herman Hesse. Lisboa: D. Quixote, 2020.

sábado, 12 de dezembro de 2020

Leituras - Manual de sobrevivência de um escritor...

 "I just want to be a kid for as long as I can."


A literatura nasce de uma necessidade. A de compor no visível uma voz que seja uma experiência emotiva. Na estranheza do mundo, nos seus sinais de absurdo, a palavra pode ser uma salvação, um ritual para construir algo que dê resposta a uma interrogação. A Literatura é a composição de um registo sobre nós próprios, sobre os sinais de uma beleza que emergem do caos, nesse confronto, a Arte e a Vida.

Nessas duas dimensões ficamos entre a existência, como o sinal de um divino e a sobrevivência. A Literatura vive de uma construção de extraordinário que se alimenta no que é o visível. Na geografia das histórias, estas decorrem no seu tempo, nas suas etapas narrativas, como uma dança no reino das coisas.

A Literatura constrói-se a partir de uma experiência, num diálogo de autorias, o escritor e o leitor. Nessa tarefa de superação do esquecimento, se o escritor imagina, o leitor dá corpo a essa imaginação. É da construção feita pelo escritor que João Tordo dedicou um livro sobre esse acto mágico e de sobrevivência que é o de escrever. Em Manual de sobrevivência de um escritor, ou o pouco que sei sobre aquilo que faço, João Tordo explica-nos como a escrita nasceu em si e como conseguiu construir histórias, essas texturas do real que parecem "partir o coração", no seu discurso de imanência e que nos fazem sobreviver ao caos de um mundo estranho. Um livro a ler e a consultar para quem ama escrever, ou o pretende fazer na iluminação das palavras.

sábado, 7 de novembro de 2020

Leituras - Contra mim

 O importante era a expectativa de as palavras fazerem um milagre. Para mim, as palavras prometiam milagres, nunca pertenciam ao normal. Eram instrumentos de partida. Iniciavam deslocações e mudanças profundas. Talvez até nos impedissem o regresso, por maior esforço ou inteligência. Abria o meu caderno como se preparasse a mesa para uma evocação. “ (págs. 96-97).

Se há assunto em que a Literatura supera a História é nas narrativas de memórias, dessa etnografia que retrata modos de vida, espaços e tempos com o encantamento ou a desilusão de quem as viveu. Às vezes parece quase inexplicável que nestes tempos de grande velocidade tecnológica, de sofisticada mobilidade e de informação generalizada o encantamento pareça distante dos dias. Entre as últimas décadas do Estado Novo e a Democracia o país era de uma pobreza muito substantiva em largas zonas do País, com uma incidência particular no país agrícola e interior. A infância é um país distante, acho eu. Entra-se nele em diferentes latitudes e um dia esse território chegou ao fim e dizem-nos, - you may leave!

Esse país pobre e distante do litoral criava formas de olhar que lhe davam uma riqueza nobre. A infância que é um lugar onde se é pequeno, quase minúsculo vê esse mundo e deslumbra-se entre a urgência de ver o que não entende e a sua experimentação. Ouvir e ver eram as formas supremas de tentar entender, o que era só deslumbramento, onde as coisas tinham cores, cheiros e sabores. Nessas dificuldades de sobrevivência nascia com a infância um espaço de magia, de lugar de referências míticas. Era difícil? Era! Mas tinha um sentido existencial, como se fosse a própria revelação das coisas. Da nostalgia das cores, das formas geográficas e das pessoas subsistia algo como uma aprendizagem, ou uma inserção no que haveria de ser o mundo.

Sobre essa entrada na infância alguns imaginaram aventuras de respostas impossíveis, como que a demonstrar que o mundo, esse que fica fora da toca coelho branco é uma irracionalidade. Outros contaram-no dentro da ternura da própria existência. O meu pé de laranja lima foi um desses marcos a inaugurar a vivência da infância dentro de um sonho por realizar, nas franjas do que se anuncia grave e árduo. Valter Hugo Mãe fez o mesmo exercício sobre o que significou ser criança nesse País pobre, distante do mundo, a aprender a ser alguma coisa, entre o mistério e o desencanto, entre o sorriso e os outros. Mas fê-lo com uma imensa autenticidade, inscrevendo-se no tempo, dando o que foi e o que ainda é.

O livro, Contra mim, é uma peça de memória sobre a infância de um escritor, os seus medos, as suas alegrias breves, as suas capacidades para se reinventar continuamente. O livro é de um humor e ternura tocantes e nele se compreende como uma criança se tornou num homem inspirado, com um sentido para encontrar nas palavras e nos outros uma forma de mudar o mundo. A linguagem recria-se com uma substantiva criatividade e ao lê-lo o que nos é dado é uma bela conversação. Um livro pode contar uma história, ou pode falar connosco sobre o que já foi, sobre essa experimentação de criar uma composição de humano. Tudo se alimenta numa experiência e na edificação de uma colecção de palavras que juntas, como as pessoas podem criar novos significados, novos mundos e neles dar sentido à memória dos que partiram, ou até a esses bocados deixados em instantes para serem recriados em cada um. 

Contra mim ultrapassa a memória de um crescimento, de uma experiência social e representa o que foi o País em tantos sítios abandonados a si próprios, providos com a magia de quem vê. Lendo este livro ficamos mais uma vez a saber que a escrita das palavras é uma recolha elaborada, sentida sobre um tanque cheio de vozes e memórias, como um sinal de um tempo. Contra mim é uma criança a escrever, entre a sua infância e esses “bocados de Deus”, entre a companhia de um mundo e o que vai sabendo de si, na relação com os outros. Será talvez um dos melhores livros de Valter Hugo Mãe. É sem dúvida, um grande livro, uma leitura afectiva do mundo, como uma criança a escrevê-lo.

 

domingo, 26 de julho de 2020

Leituras - Raízes da vida

                   "O meu pensamento vagueia entre a profundidade simbólica e estética das cores."


Raízes de vida é um livro interessante para fazer uma viagem, a mais completa ou talvez a mais difícil de todas, nestes sinais debaixo do sol e no enquadramento das estrelas. Na viagem que fazemos podemos ter muitos sinais capaz de fundar princípios que nos envolvam para o significado dos nossos gestos. Os mais evidentes parecem estar ligados ao próprio significado da vida e deste conceito raízes.

Partindo da anatomia de uma árovore, Bagão Félix acompanhado de Ana Paula Figueiras criaram uma viagem que pode ser a de cada um, mesmo com estes elementos comuns. A raiz, o caule, os ramos, as folhas, as flores e os frutos conduzem valores e sentimentos, deixando pistas para uma leitura feita por nós, em cada uma das suas vidas.

Raízes como algo que nos sustenta, nos dá substância para andar, como o amor, a esperança, ou o sonho. O caule como o que nos alimenta, ou pode dar coerência de significado, como a amizade, a lealdade ou a solidariedade. Os ramos como o que nos envolve, aquilo que é visível de nós, como a aparência, a diversidade ou a tolerância. As folhas, como aquilo que sabemos renovar, reencaminhar para novos sentidos, como a audácia, a harmonia ou  o humor. 

E, ainda as Flores como aquilo que nos faz caminhar como uma sedução continuada, como a fantasia, a inocência ou a loucura. E os frutos, o que revelamos e os sinais de uma teia aos outros, como a fidelidade, a liberdade ou a doçura.

Um livro inspirador de muitas ideias para uma aventura desafiante e difícil, terna e vital, como é a vida.

Raízes de vida / Bagão Félix com Ana Paula Figueira. Lisboa: Clube do autor, 2019.
Imagem: Copyright - Innatia.com

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Biblio@rs (XVIII-XXI)

A Civilização Grega - ideias finais (I)
Tentámos por aqui fazer uma viagem sobre a arte desde a Pré-História, as Civilizações Pré-Clássicas e as suas principais marcas que se desenvolveram na margem do Mediterrâneo. A Civilização Grega foi um marco na História da Humanidade. Demos-lhe um significativo destaque. Esta viagem poderia continuar e talvez seja uma ideia interessante fazê-lo no próximo ano letivo, não só porque é uma componente curricular de uma disciplina, mas porque o mundo que herdamos é feito de uma memória que influencia o modo como pensamos e cria possibilidades para a vida que ensaiamos construir. Para os últimos três dias, uma ideia final e duas publicações sobre esse mar visual de grande significado que é a Civilização Grega.

A mitologia, as lendas, as narrativas orais foram uma das formas de realizar uma aprendizagem para um povo disperso entre cidades-estados e ilhas, no vasto Mediterrâneo. Esses textos deram unidade a uma cultura, a uma língua e retratam o modo como a memória se integrava no quotidiano da sociedade grega. Desse tempo ainda permanecem dois livros fundadores, A Odisseia e a Ilíada, ambos atribuídos a Homero. São dois textos sobre a procurar definir a viagem, como lugar de procura e de encontro, mas também sobre o sentido que podemos tirar da vida. É desta realidade última que fala a Ilíada.
Na Ilíada encontramos um poema épico que nos retrata uma figura essencial da narrativa de Homero, Aquiles. Este transtornado pela perda do amigo Pátroco mata Heitor, arrasta-o até ao túmulo daquele e acaba por restituí-lo a Príamo, rei de Tróia. 
Trata-se de um episódio relativo à guerra de Tróia e esta narrativa, a Ilíada coloca-nos questões muito relevantes, que ainda nos importam. É importante compreender que estas vozes do passado podem ainda nos fazer refletir sobre as possibilidades do nosso próprio mundo, pois as grandes questões são as mesmas. Qual o significado da vida, como enfrentar a perda e a finitude daquela. 
A Ilíada sobre um fundo de uma narrativa épica fala-nos sobre o  sofrimento humano e como é difícil passar ao lado das dificuldades da própria vida.  Como superar as dificuldades, as surpresas que tantas vezes se encontram na vida? 
É a defesa da sua auto-estima que faz lutar Aquiles. São os valores da sua identidade que fazem lutar Heitor. Valores diferentes e que comportam o valor individual, suficiente só consigo ou o que integra os outros. E ainda que o valor máximo é a vida. É isso que Aquiles compreende nos momentos finais, no funeral de Heitor. A morte como o fim único e possível para todos os seres vivos é a lição final da Ilíada. A vida como espaço de efemeridade, sem proteção absoluta, mas encantadora pelo desafio de defesa de uma ideia, de um sonho, de uma respiração.
Aquiles, herói da guerra de Tróia, representação (museu de Atenas)

terça-feira, 23 de junho de 2020

Biblio@rs (XVIII-XX)

A Civilização Grega - o belo como representação (IX)
A Civilização Grega não permaneceu apenas no seu tempo. Influenciou os séculos seguintes de um modo muito substantivo. A Alta Idade Média ou o Renascimento foram apenas duas das muitas influências que deixaram. Nem sempre nos apercebemos, mas a revolução científica nascida com o Renascimento deveu muito a esta civilização do século V a.C., pois a ideia do número, a linguagem matemática como forma de encontrar algo a compreender no rela é uma ideia grega.
Na Civilização Grega os pitagórico, os que continuaram as ideias de Pitágoras fizeram do número um conceito essencial para tornar o real inteligível. Os pitagóricos fizeram do número uma grandeza que permitiu evoluir do conceito aritmético ao geométrico e espacial. Inventaram o tetraktys que é na verdade um triângulo em que o ponto central está equidistante dos pontos que formam o triângulo equilátero, que significa com três lados iguais. É possível dar continuidade à série de cada ponto, de modo que se obtêm uma figura, um "reticulado potencialmente infinito". 

Os pitagóricos descobriram nestas harmonias geométricas uma forma de belo, um sentido inteligível do universo, pois as harmonias aritméticas tinham correspondência em harmonias geométricas. Na verdade os pitagóricos redefiniram o conceito do número. Uma das relações que foram estabelecidas foram as relações matemáticas com os sons musicais e que proporções se definiam entre os intervalos dos sons e ainda a relação entre o comprimento de uma corda e a altura de um som. 
A ideia do belo também se representa pela ideia de harmonia musical. Boécio na Idade Média confirmou esta ideia de harmonia dos pitagóricos lembrando uma observação feita por Pitágoras. Num dado dia, um ferreiro colocara martelos de diferentes pesos que criavam sons proporcionais a essa dimensão. Sabemos que com eles a música influenciava diferentes estados de espírito. O ato de adormecer e acordar era realizado pelas pitagóricos como forma de verificar a modulação do som e o efeito em cada pessoa. Talvez nem sempre o percebamos, mas a representação do belo também se faz pela música e por esta ideia pitagórica de proporção.
Imagens: "músicos", cerâmica grega - século V a.C; Michelangelo Buonarroti, Estudo para a sala dos livros raros da bibioteca Laurenziana, Florença, c. 1516.