domingo, 26 de fevereiro de 2017

Leituras - A forma na arquitectura

Sobre minhas ideias políticas direi que fui sempre um revoltado. Nunca esqueci - tinha oito anos - minha avó a dizer para a empregada: "Tira esse pano da cabeça, negra não usa isso". Depois, foi a própria vida a evidenciar suas misérias: o patrão a oprimir o empregado, o amigo mais pobre preterido, o desamparo que aflige nossos irmãos brasileiros e a burguesia ignorante a oprimi-los, ou a se manifestar de forma paternalista e irresponsável. Não podia ter dúvidas sobre a posiçao a tomar, num país em que setenta por cento da população sofre, explorada e perseguida.

Com relação à minha actuação profissional, direi que trabalhei demais, que me sinto um homem que ficou num canto a desenhar sem sentir o universo que o cerca em todas as suas grandezas e mistérios, sem ter tempo para olhar a própria vida e sobre ela divagar, sozinho, como Descartes.Mas estou tranquilo. Afinal, fiz o que pude fazer e não esqueci os que sofrem e com eles, caminho solidário.

Diante da evolução contínua e invejável dos programas que surgem, criandos pela vida e pelo progresso, o arquitecto vem concebendo, através dos tempos, o seu projecto: frio e monótono ou belo e criador, conforme o seu temperamento e sensibilidade. Para alguns, é a função que conta; para outros, inclui a beleza, a fantasia, a surpresa arquitectural que constitui, para mim, a própria arquitectura.

E essa preocupação de criar a beleza é, sem dúvida, uma das caractaerísticas mais evidentes do ser humano, em êxtase diante desse universo. E isso encontramos nas épocas mais remostas, com o nosso ancestral longínquo a paintar as paredes de sua caverna, antes mesmo de construir o seu pequeno abrigo. E o mesmo se repete pelos tempos afora, a partir das pirâmides do Egipto. Arquitectura - escultura, forma solta e dominadora sob os espaços infinitos. 

Pelos anos trinta quando comecei a arquitectura contemporânea se fixava entre nós, com o funcionalismo pontificando, recusando a liberdade de criação e a invenção arquitectural sempre presentes nos grandes períodos da arquitectura. Foi o tempo da planta de dentro para fora, do ângulo recto, da máquina de habitar,; da imposição dos sistemas construtivos, limitações funcionalistas que me não me convenciam ao olhar as obras do passado tão cheias de invenção e lisrismo. 
Não podia compreender como, na época do concreto armado que tudo oferecia, a arquitectura contemporânea permanecesse com u mvocabulário frio e repetido, incapaz de exprimir aquele sistema em toda a sua grandeza e plenitude.

Durante os primeiros tempos, procurei aceitar tudo isso como uma limitação provisória e necessária, mas depois, com a arquitectura contemporânea vitoriosa, voltei-me inteiramente contra o funcionalismo, desejoso de vê-la integrada na técnica que surgira e juntas caminhando pelo campo da beleza e da poesia.
E essa ideia passou a dominar-me, como uma deliberação interior irreprimível, decorrente talvez de antigas lembranças, das igrejas de Minas Gerais, das mulheres belas e sensuais que passam pela vida, das montanhas recortadas esculturais e inesquecíveis do meu país. "Oscar, você tem as montanhas do Rio dentro dos olhos", foi o que um dia ouvi de Le Corbusier.

A arquitectura deve exprimir o progresso técnico da época em que é realizada. E, mais, que não acredito ter a burguesia interesse em resolver o problema da classe operária, que o importante é mudar a sociedade. "Mudar a sociedade". Esta é a forma de base indispensável para a arquitectura mais humana que desejamos. E reclamá-la, a única atitude a tomar, se estamos realmente interssados no problema social.

Disse-o uma vez, "devemos aceitar que quando uma forma cria beleza ela tem uma função e das mais importantes na arquitectura". É o que ainda tenho a dizer sobre a forma na arquitectura, sobre a criação arquitectural que tanto me ocupou por toda a vida, embora interessado em outros problemas, revoltado com a miséria, muito mais importante, para mim, do que a  arquitectura.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Vida Activa - O espírito de Hannah Arendt


"Não há pensamentos perigosos;
Pensar é perigoso em si mesmo" - Hannah Arendt

Título original: The Spirit of Hanna Arendt
Realizadora: Ada Ushpiz
Género: Documentário
Produção: Israel / Canadá, 125 minutos, 2015

Vida Activa, O espírito de Annah Arendt é um documentário sobre o pensamento político e filosófico de Hannah Arendt (1906-1975). O documentário tenta contextualizar as reflexões de Hannah Arendt sobre um conceito que ela própria criou, "a banalidade do mal". Vida Activa, O espírito de Annah Arendt faz uma leitura cronológica da sua vida nos seus marcos mais importantes, a vida na Alemanha, a emigração para França e depois para os Estados Unidos ao lado dos acontecimentos que viveu e destacando as figuras com que se relacionou, com destaque para Karl Jaspers e Martin Heidegger. O filme fez parte da selecção oficial da selecção do filme documentário em Amesterdão, 2015, integrou o FilmFest de Munique também em 2015 e fez parte da selecção oficial do Jerusalem Festival Film.

O filme é um registo de grande valor histórico e cultural pois coloca-nos de frente para diferentes realidades que importa pensar: 
  1. o conhecimento do que foi o totalitarismo nazi e como o explicamos, como compreendemos os seus mecanismos. 
  2. a ideia de banalidade do mal, o que significa no que foram os julgamentos de Nuremberga e como isso se relaciona com o significado da cultura alemã;
  3. O mal como pode ser ele explicado, a partir de que pensamento, de que acção? 
  4. Vida activa - como a conciliar como uma prática de vida e uma liberdade de ser?
Questões essenciais para compreender o século XX e este século, pois como Arendt assinalou, os sistemas totalitários podem ser eliminados, mas os mecanismos desse totalitarismo podem sobreviver ao seu tempo histórico. Vida Activa, O espírito de Annah Arendt é um documentário a ver várias vezes, pois a intensidade do pensamento de Hannah Arendt é de uma riqueza que nos deixa incapazes de tudo absorver no imediato. É lamentável que dos jornais respeitáveis ninguém arrisque uma análise detalhada sobre o filme. As cartas entre Hannah Arendt e Karl Jaspers são de uma enorme riqueza para a compreensão do que foi o nazismo, esse dilúvio e que arca sagrada sobrou desse holocausto .

Vida Activa, O espírito de Annah Arendt  é uma narrativa fascinante para compreensão de um conceito que nem sempre é entendido, a mediocridade do homem e a sua conciliação com actos abonimáveis, como foi o de Eichmann, mas também para a interrogação do colapso moral que em sociedades respeitáveis não se luta pelas linhas mais básicas da condição humana. É-o também para a compreensão de que quando o pensamento de detém perdemos essa condição, a de construir uma acção. Foi essa a limitação de Heidegger num momento crucial da ascensão do nazismo.

Vida Activa, O espírito de Annah Arendt vale ainda muito sobretudo por nos dar uma pensadora verdadeiramente livre, que não se enquadrava nos liberais, nem nos marxistas, nem nos católicos. Hannah Arendt é o pensamento em acção, a liberdade de construir uma vida que dos escombros do exílio sabe compreender um mundo mutilado. Arendt diz-nos algo essencial, pensar é o que nos define, é um desafio para todos, é a forma de construir a relação de um com o outro, a forma de conceber uma cidade participada. O pensamento é essa possibilidade de reconhecer um passado e um futuro e de descobrir formas de o construir, de o fazer novo para o futuro. É ele que consolida essa massa essencial da condição humana, a pluralidade.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Leituras - A vida no campo

" - A incultura - digo, com o ar professoral que me resta - não será tanto a ignorância como a falta de curiosidade. Portanto, a cultura também não é o conhecimento. O conhecimento  está ao alcance até de um coleccionador. A um coleccionador não se exige empatia. Mesmo um sociopata pode ser um homem de conhecimento.
Fixo-o nos olhos.
- O homem inteligente é aquele que se deixa maravilhar." (p. 203)

A vida no campo é o testemunho de uma experiência, a vida construída num regresso, a geografia, as pessoas, os pequenos instantes capazes de uma redenção essencial. Livro auto-biográfico sobre essa experiência de regresso aos Açores, à ilha Terceira, onde se misturam as memórias, a paisagem que tanto dita da forma de ver e construir com os outros.

A vida no campo procura ainda fazer uma leitura do que significa viver em Lisboa, ser um urbano emprestado à cidade e realizar uma comparação, com o que se pode ser regressando ao lugar de origem. Livro de uma experiência intensa e maravilhada que descobre no quotidiano valores e uma sabedoria evidentes. João Neto escreveu uma não-ficção recorrendo à memória da sua família, aos modos simples da  Terra Chã e deu-nos uma pérola onde descobrimos, quem ainda não o soubesse, que a vida pode ser mais serena, mais viva e mais livre junto da natureza.

A vida no campo convida-nos para um conhecimento com o mais simples, o que nos faz crentes do mais importante, a que respira tranquilidade com os outros, porque a faz connosco, a que constrói esperança e reforça a intimidade. A que junta o Homem e a Natureza, comprovando o poema de Alberto Caeiro, na cidade a vida é mais pequena que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

A vida no campo é um livro de uma imensa luz, com o coração dos que em simplicidade transportam "o nome das coisas". Livro que nos ilumina, portador de uma linguagem emotiva, cuidada e que contribui para o papel da literatura, como evocação dos esquecidos, que em gestos de afecto nos salvam por nos aproximarem da essência perfumada do silêncio.

sábado, 28 de janeiro de 2017

A bullshit universe - Trump world

Imaginem uma mistura de um comentador anónimo cheio de fúria com todos que não são ele próprio com um troll da Internet e alguém que vive entre “gostos” e conflitos nas redes sociais, um participante num reality show, um espectador obsessivo de televisão do crime, do sangue, dos escândalos, dobrado de um dos banqueiros que nos fez chegar à crise de 2008, um dos empresários que faz parte da lista das imparidades da Caixa, do BES, de tudo quanto é banco e continua a viver como se nada fosse, um menino mimado, um bully que se sente impune para ameaçar quem quiser e tem alguns meios para ser temido nessas ameaças. Ao fazer isto tudo, ou algumas destas coisas, ao ter alguns destes vícios e obsessões, fica-se a pensar e a actuar de uma determinada maneira? Claro que fica. E não é boa.

Pois deitem salvas e foguetes, uma personagem destas chegou a Presidente dos EUA. É um populista e um demagogo clássico? Também é, mas é mais moderno do que clássico, mais novo do que antigo. Esqueçam a senhora Le Pen (não, não esqueçam), um produto reciclado da extrema-direita francesa, uma das que têm maior história na Europa, porque Trump é outra coisa, com outra história, outros know-how, outros riscos enormes para a democracia e a paz do mundo. Trump é um populista e um demagogo, mas também é um revolucionário, quer realmente mudar as coisas, nem que para isso tenha de levar tudo à frente. Para onde as quer levar sabemos pelos slogans e as intenções, mas eu aconselhava toda a gente a tomá-los à letra, mesmo quando contraditórios. Quer fazer da América “grande”; quer “dar voz” aos danados da terra do rust belt; quer dar aos empresários tudo o que precisam para deixarem de se preocupar com impostos, com a regulação, com tudo o que lhes dificulte ganhar mais dinheiro e fazer mais fábricas, mais empresas, mais automóveis, mais pontes e estradas; quer expulsar os “outros”, milhões de estrangeiros ilegais, que diz estarem nos EUA, quer-se dar bem com Putin, que acha que é como ele, esperto, audaz, sem regras, e não está disposto a ter de pagar a defesa dos europeus, nem dos japoneses, nem dos coreanos, nem de ninguém que não seja americano.

Mais do que querer controlar como nós pensamos, quer forçar-nos a pensar como ele pensa. Se não vão a bem, vão a mal. No seu mundo, a sua opinião sobre as coisas é equivalente à verdade, uma atitude muito comum nas redes sociais e usa todos os meios para que, se não conseguir que só a sua “opinião-verdade” circule, pelo menos que circule com o mesmo estatuto dos factos. Há vários exemplos típicos de como se perde qualquer conteúdo neste tido de comunicação. Comunica-se apenas a força, mais nada. Depois de ter feito declarações ofensivas para as mulheres várias vezes, quando confrontado, repete à saciedade que “ninguém mais do que [ele] respeita as mulheres”. Repare-se: “ninguém mais…” Fez o mesmo com os serviços de inteligência. Depois de lhes ter chamado “nazis”, foi à CIA dizer que “ninguém mais do que [ele] preza os serviços de informação”- Repare-se, de novo: “ninguém mais…” Tudo se torna opinião – insisto, como nas redes sociais – e num mundo em que a opinião, a impressão, o “achar” substituem os factos pela força do número e a amplitude do vozear. A racionalidade é expulsa. Domina apenas o pathos.

A relativização do espaço público torna-se total e isso faz depender o que cada um pensa apenas da força de quem tem mais força. O bullying na informação é um factor fundamental da “experiência Trump” para varrer o espaço público dos factos incómodos e mostrar que apenas uma voz tem força – a sua. É um dos sinais mais preocupantes da tendência para o autoritarismo em Trump. Veja-se a utilização do Twitter. Trump usa o Twitter para dar notícias, para emitir opiniões e para fazer uma espécie de decretos presidenciais. Nada do que ele faz é novo, tudo são formas clássicas de comunicação. Se, em vez de dizer no Twitter “Amanhã haverá novidades sobre segurança nacional”, os seus serviços de imprensa fizessem uma nota dizendo “O presidente Trump anunciará amanhã numa visita à sede de CIA novas iniciativas sobre segurança nacional”, o conteúdo seria exactamente o mesmo. Se fizesse uma declaração à imprensa à saída ou à entrada de uma reunião, como é habitual acontecer em Portugal, dizendo que é um escândalo a CNN manipular o número de pessoas na tomada de posse, é o mesmo que no Twitter dizer as mesmas palavras, sem tirar nem pôr. O uso do Twitter para anunciar uma decisão é o mesmo que emitir uma “ordem executiva” que depois assina em papel numa pasta de couro emoldurada a ouro. 

Nada disto é novo, só teve um upgrade tecnológico que lhe dá uma dimensão nova e essa dimensão tem sérias consequências sociais, culturais e políticas. Ao escolher um sistema de mensagens que tem o limite de 140 caracteres, Trump está a fazer uma declaração, um grito, uma ordem, mas prescinde de qualquer explicação racional para o que está a dizer, porque não cabe na mensagem, nem ele o quer fazer. Mas está também a falar do local do poder, a tornar puramente pessoal a comunicação e a pretender fazê-lo sem mediação. Aqui está outra coisa em que ele é moderno: para ele não importa, nem ele deseja, que haja qualquer mediação que “inquine” a sua voz. É ele e o “povo”. O Twitter substitui a comunicação social.

Todas as suas declarações e medidas são quase sem excepção inaceitáveis numa sociedade democrática, e não adianta dizer que tudo foi sufragado pelo “povo” em eleições. Uma democracia, vale a pena estar sempre a repeti-lo, não é apenas o voto – é também os procedimentos e o primado da lei. O modo como fala de deportar os ilegais só pode ser feito com um enorme reforço policial e campos de concentração. E depois onde é que os deixam? Na fronteira com o México? Atiram-nos ao mar para eles regressarem à Síria ou ao Brasil? Deportar dois milhões de pessoas não tem precedente desde a Segunda Guerra e não pode ser feito em tempo de paz sem uma mudança estrutural do Estado, tornando-o um Estado policial. O modo como fala da tortura viola várias convenções sobre a guerra e as declarações de direitos humanos que os EUA assinaram, para além de que qualquer militar lhe dirá que isso expõe os soldados americanos ao mesmo tipo de práticas. As guerras não são só com o ISIS, que não conhece qualquer regra, mas com outros inimigos, que estarão agora à vontade para aplicar aos americanos os mesmos métodos. A Administração Trump ficará igual aos torcionários argentinos e brasileiros.

A imediata ameaça e chantagem às empresas que trabalham fora dos EUA, às cidades que se recusam a entregar informação sobre emigrantes ilegais que nelas habitam, como Nova Iorque, ou que se recusam a aceitar as políticas de discriminação religiosa contra os muçulmanos, a todos os sectores da administração ligados a políticas de natalidade, de controlo dos nascimentos, de igualdade de género são também mais típicas de uma governação autoritária do que democrática.
Trump quer fazer o que quer sem qualquer entrave. Não é um democrata, não é um liberal, não é um conservador, nem um fascista, nem um nacionalista, é um demagogo revolucionário, egocêntrico e autoritário, que só ouve a voz do seu próprio sucesso. E, como sucesso não lhe falta, essa voz soa-lhe bem alto. Milhões de americanos já entenderam que com Trump a resistência tem de ser imediata e constante e não pode ser complacente ou adiada. Como Trump tem com ele também muitos milhões, o ambiente político nos EUA é de cortar à faca e vai-se agravar todas as vezes que ele abrir a boca, e vai abri-la todos os dias, porque precisa de um contínuo fluxo para alimentar o seu estilo revolucionário. Menosprezem-no e pagarão um preço bem alto.

José Pacheco Pereira. "Trump, o rei dos tempos modernos", Público, 28.01.17
Imagem - Copyright, Los Angeles Times

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Leituras - Apologia do ócio

"A devoção perpétua ao que o homem considera o seu trabalho só pode ser sustentada negligenciando todas as outras coisas. E não é de forma alguma uma certeza que o trabalho de um homem seja a coisa mais importante. De uma perspectiva imparcial, parece evidente que muitos dos papéis mais sábios, virtuosos e proveitosos no teatro da vida são desempenhados gratuitamente, e são vistos, pelas pessoas em geral, como produtos de ócio." (1)

"Apologia do ócio" e "A conversa e os conversadores" são dois pequenos ensaios de Robert Louis Stevenson publicados em 1887 e 1882 na revista Cornhill Magazine e agora editados pela Antígona sob o título, Apologia do ócio.

Stevenson é um dos grandes  nomes da Literatura anglo-saxónica tendo deixado páginas muito significativas na leitura da alma humana, em duas obras marcantes, A ilha do Tesouro de 1883 e O médico e o monstro de 1886. Conhecido como um exímio contador de histórias e um infatigável viajante dá-nos em Apologia do ócio, um pequeno livro cheio de da vida mais luminosa que ainda é possível os seres humanos cultivarem.

No 1º ensaio Stevenson com aproximações a Thoreau explica-nos o valor cultural do ócio, um instrumento para cultivar uma arte de viver, onde a satisfação e a alegria possam enriquecer individualmente cada um, mas também a sociedade. A palavra ócio está impregnada de falsas atribuições, também porque no mundo dito civilizado apenas as actividades lucrativas devem merecer o entusiasmo dos vivos. Há na verdade uma religião social e política que consagra a sua fé a proclamar que os que não se deixam motivar / participar pelo espírito das moedas são gente de modesto valor humano. 

O ócio não é, como geralmente é tratado a pura negação de qualquer actividade. O ócio tem em si o gesto de uma concretização. Coisas que os princípios dogmáticos dos instalados no poder não pretendem aceitar. A indiferença do ócio pelas grandes e árduas tarefas do dinheiro e da conquista é a que fez Alexandre estranhar que Diogénes pela sua conquista de Roma. 

O ócio cultiva uma aprendizagem, a que se realiza nas margens de uma ribeira, junto a um muro de lilases ou sobre as copas das árvores, onde as cotovias abraçam o vento. Essa aprendizagem procura a maior lição de todas, "Paz, ou contentamento" (pág. 17). A aprendizagem assim feita dispensa conceitos e categorias e é por isso que é desprezada pelos grandes "sábios".

O mundo dedicado a uma actividade frenética, a acumulação retórica do saber ou o lucro interminável de vinténs produz pessoas com pouca consciência do seu próprio estado - estarem vivas e reduz-lhes a capacidade de exploração da curiosidade. Há um conjunto de coisas nobres que essa devoção quase exclusiva ao trabalho faz perder. A capacidade de estabelecer uma conversação agradável, a descoberta do mundo natural que nos envolve são caminhos para a construção do "teorema da viabilidade da vida" (pág. 27). 

A sensatez que um homem de ócio cultiva é de uma imensa generosidade, pois o que o mundo precisa não é de doutores a lutar por medalhas, mas pessoas felizes. Pessoas que iluminam espaços e que influenciam positivamente os outros. Apologia do ócio é um livro-pepita, um tesouro para salvar a vida, num mundo escravizado pelo dinheiro, pelo poder e dominado por uma aparente vitalidade.

(1) Robert Lous Stevenson. (2016). Apologia do ócio. Lisboa, Antígona, páginas 23 e 24.


quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Leituras - As núpcias silenciosas


Hoje aviso-te
que ficarei para sempre
arquejando no teu corpo,
na orla infinita da tua mão,
no teu ombro, que é uma espada.
Na tua língua, que é a minha.
Só o teu coração saberá
se é
promessa ou ameaça,
mas ficarei para sempre
e basta
.

("Mesmo que as tuas velas gelem"). 
 
Lourdes Espínola é uma poeta, crítica literária e jornalista natural de Assunção, Paraguai, onde nasceu em nove Fevereiro de 1954. Com uma formação diversificada nas áreas da Ciência, da Biologia e da Literatura tem representado o Paraguai em programas de leitura em diferentes universidades dos Estados Unidos e desempenhado o corpo de conselheira cultural do Paraguai em diferentes países  europeus.

Lourdes Espínola publicou mais de uma dezena de livros, com destaque para Timpano Y silencio (Alcantara Editora, Paraguai); La Estrategia dell Caracol (Manrique Zago Editores, Buenos Aires); Encre de Femme (Indigo Editions, Paris), Les Mots du Corps (Indigo, Paris) ou ainda Desnuda en la palavra /Ediciones Torremogias, Madrid). Com tradução em várias línguas, a sua obra tem recebido diferentes prémios literários, como o Prémio Sigma Delta Pi (E.U.A.), o Prémio La Porte des Poètes (França) e o Prémio Nacional de Poesia Herib Campos Cervera (Paraguai). 

Nesta edição da Glaciar e com tradução de Albano Martins esta 1ª edição procurou associar-se aos 205 anos de independência do Paraguai. Lourdes Espínola trata na sua obra da siuação da mulher, reflectindo sobre o corpo e a condição amorosa. As formas de exercício de liberdade e da condição da mulher no mundo actual é uma temática frequente na sua obra.

 Lourdes Espínola. (2016). As núpcias silenciosas. Lisboa: Glaciar. - (Cadernos de poesia). 

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Leituras - O lugar supraceleste

"O corpo não é o inimigo da alma. É essa a minha crença. Ambos precisam do mesmo sustento, que a ambos liberta: a verdade. Nas palavras de Goethe, "amaldiçoo a  mentira: ela não liberta a alma, ao contrário da verdade". Tal como Goethe, não falo aqui de uma verdade teológica, filosófica ou outra. Falo apenas da limpidez autêntica da verdade, em todos os nossos actos, gestos e palavras. Assim, o inimigo da alma não é o corpo; o inimigo da alma é o contrário da verdade."  

Existem livros que não nos narram histórias, eventos, ou experiências. Existem autores que não escrevem sobre o imaginário que não conhecemos ou sobre as experiências que a vida nos oferece no sentido da apresentarem como aquilo que são, apenas a face externa delas próprias. Existem livros que procuram no silêncio da realidade uma forma de encontrar uma extensão possível do que cada um é. Existem autores que procuram já no âmago da pedra verificar o sentido do enigma, o que Rilke chamaria a melodia das coisas.

O Lugar supraceleste de Frederico Lourenço é um desses livros e ele um desses escritores à procura da chama íntima das coisas, quando o futuro ainda é presente e quando o real é ainda uma possibilidade de cada um de nós, de construção de uma sabedoria. É um livro lindíssimo, no sentido de uma revelação, de uma caminho que sobe uma escadaria para chegar a um lugar mais elevado, o supraceleste.
"O mais íntimo tutano da alma", expressão de Eurípedes, a que Frederico dá corpo como uma linha desenhada na vida, construída no tempo. Livro lindíssimo, sim, mas de uma dificuldade imensa para o capturar, para o trazer para nós, nesse conhecimento que é uma sabedoria de que Frederico dá conta de forma tão substantiva que nos deixa à mercê de um sonho, o nosso, o que faremos dele.

Livro que procura uma ascensão, que tenta chegar às estrelas, às circunferências iluminadas de azul, às rosas de Píndaro para escrever a identidade de um caminho muitas vezes feito de angústia e por onde esse perfume de rosas faz avançar para outras formas de ser, sempre na margem de uma verdade pessoal, uma respiração das coisas em nós, quer dizer, nele. Em nós, também porque o livro é uma conversação, porque nos tenta dizer o que já fizeste para encontrares na manhã dos dias, "o mais íntimo tutano da alma?"

A escrita do livro  que Frederico propõe a si e que nos revela a nós faz-se muito da ideia de ascensão, de subida a um tempo de reconstrução pessoal, como forma de avançar. Ideia alimentada pela atmosfera musical e estética da Bach. O Lugar supraceleste é o desenho de um caminho, uma rota feita e é nesse sentido uma viagem, não com um traçado definido, mas na sua forma mais sublime, viajar para conhecer o mundo e os outros.

Ana Mota Ribeiro na apresentação do livro falou da erudição de Frederico como uma das suas chaves, erudição que nos comove, nos alimenta em pequenos pormenores, pois nós não somos desse mundo, ao contrário dele que parece ser "de outro tempo, de outro lugar". Frederico vive em diferentes tempos, esse de onde ele espalha uma sabedoria e um cuidado com que relata a melodia das coisas e as imagens com que escreve o tempo actual. E nesse sentido essa vivência em tempos diferentes permite-lhe "falar das insónias de Zeus como se falasse das nossas. (1)"

O Lugar supraceleste é uma ascensão que parte de lugares, de pessoas e de afectos. O Lugar supraceleste é uma ascensão que vive de atmosferas formativas, os pais, os lugares sagrados, os sons de uma aprendizagem para reordenar a mente para novas possibilidades. O Lugar supraceleste é uma ascensão tentada como uma vida a construir-se e a perguntar-se que valor e sentido tem, que perguntas importa responder. Sem dúvida a concretização da ideia de Eurípedes, o conhecimento do nome das rosas, da sua fragância e a descoberta de um belo que é tocante, do qual nascerá outro, assim o saibamos formular. 

O Lugar supraceleste é sobre uma viagem, um caminho de ascensão que já sabe na revelação de um belo que ele é um efémero e que essa dicotomia é a base de qualquer forma de revelação. A resposta mais bela para esse conhecimento é construir uma sabedoria que se faz de interrogação e de um caminho que cada um entrega a si próprio. Viagem confrontada com os caminhos nem sempre agradáveis da infância/adolescência, daquilo que só mais tarde se compreende.

O Lugar supraceleste revela um sentido de procura para em tempos diferenciados entender o que antes não se entendeu e compreender a fragância que os pais sempre dão e ver nela o que se pode entender dentro de nós, dentro dele, mas também os que quiserem ter a coragem de realizar essa viagem. O Lugar supraceleste é um livro de uma imensa e clarividente coragem, de uma exposição à procura de uma revelação. A que transporta a doçura herdada, como no seu caso da mãe que é imensamente tocante, uma definição sobre o amor, uma memória de todo o futuro, ou na memória do pai e do seu sentido redescoberto mais tarde.

E, finalmente a conquista de uma sabedoria que importa que nós façamos, a de compreender a frase de Voltaire, “Le paradis terrestre est où je suis.” E aprendemos com ele essa lição maior que os Gregos já conheciam, a identificação de paraíso com jardim, o que nos conduz ao corpo e à substância das experiências e do que cuidamos. E ainda essa ingenuidade ou saber feito dedicação vinda de Witenstein, de que as flores falam, o que nos faz acreditar em nós como cuidadores de fragâncias. E ainda e sempre a música, a cartografia desenhada de sons que permitem simbolizar essa ascensão. O Lugar supraceleste fala de tudo isso que é a vida, estabelece connosco uma conversação para que da experiência de Frederico nós também saibamos fazer perguntas e encontrar as nossas respostas, realizar a nossa viagem. Um livro deslumbrante de uma figura fascinante.

(1) - Anabela Mota Ribeiro, apresentação do livro, blog da Cotovia.