quinta-feira, 24 de março de 2016

Leituras - O tempo, esse grande escultor

"Acordo. Que disseram os outros? Aurora que, cada manhã, reconstróis o mundo; integral nos braços nus que conténs o universo; juventude, aurora do homem. Que me importa o que outros disseram, o que acreditaram. Sou Febo del Poggio, um bobo. Os que falam de mim dizem que sou pobre de espírito; talvez nem tenha espírito. Existo como um fruto, como um copo de vinho, como uma árvore. Quando vem o Inverno, as pessoas afastam-se da árvore que não dá sombra; comido o fruto, deitam fora o caroço; vazio o copo, vão buscar outro. Eu aceito. Verão, água lustral da manhã sobre membros ágeis; ó alegria, orvalho do coração...
Acordo. Tenho diante, atrás de mim, a noite eterna Eu dormi milhões de idades; milhões de idades eu vou dormir... Só tenho uma hora. Havia de estragá-la com explicações e com máximas? Estendo-me ao sol, sobre o travesseiro do prazer, numa manhã que não voltará mais". (1931) - (1)

Há palavras e formas de descrever o que vivemos em tantos tempos do passado e em tantos sonhos do futuro que ficamos apenas deslumbrados, como quando observamos um pôr-do-sol ou a luz prateada da lua nas ondas nocturnas da praia. Marguerite Yourecnar é uma dessas vozes sem tempo, onde as palavras se fazem de inteligência, sabedoria e beleza. 

Em O Tempo, esse grande escultor, reúnem-se um conjunto de artigos que reflectem sobre arte, história, cristianismo, natureza, pintura, ou diversas reflexões sobre o Oriente. Textos publicados desde os anos trinta e os anos oitenta em diferentes publicações e que são aqui reunidos. Livro já com alguns anos, a que vale a pena voltar para redescobrir como o tempo molda tudo, as pessoas, os seus gestos, a sua compreensão e os próprios artefactos da matéria. 

Em O Tempo, esse grande escultor vemos os significados dos movimentos da natureza e o modo como os integramos numa vida cultural e social. Percebemos como as civilizações criam rituais de significado e como somos peças intermitentes de um sonho de humanidade que o tempo marca e que apenas podemos compreender e levantar como um sonho. Aquele que deixamos pela nossa passagem.

(1) - Marguerite Yourcenar. (1984). O tempo, esse grande escultor. Lisboa: Difel, p.23.


terça-feira, 8 de março de 2016

Vinte anos de poder - o regresso do passado

O poder basta-se a si próprio alimentado pela sua cegueira, pela sua autoridade, pelos seus privilégios, pelos seus rituais de sobrevivência de influências, pelo esquecimento do rosto das pessoas. Em dias intermináveis um homem construiu um poder para si, na pura forma cinzenta de uma cidadania sem país, sem pessoas, sem cultura. E por uma vez, por uma vez apenas temos essa alegria da despedida de quem não soube ver que pessoas tinha à sua frente, que esquecimento organizava o que não cabia no bolso ideológico de um passado sem futuro, de um presente sem qualidades. O futuro será diferente? Não sei. Possivelmente com algumas graçolas. O País mudará? Não nasceu ainda a irreverência de pensar nas praias tristes de um povo, cuja não história se faz de intermitências de passado sem futuro. Por um dia, por um dia apenas, é sempre reconfortante ver sair quem não conheceu, não procurou conhecer o que importava mudar. O rosto da beleza e a esperança.

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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Na memória de David Mourão-Ferreira

David Mourão-Ferreira foi um príncipe das letras, no sentido em que detinha um conhecimento muito apurado da, das formas clássicas da Literatura, a que ele deu um grande contributo. David nasceu em Lisboa, a vinte e quatro de fevereiro de 1927, cedo tomou conhecimento de autores que vão marcar a sua obra como Paul Valéry, Marguerite Yourcenar, Marcel Proust, ou José Rodrigues Miguéis, que era amigo do seu pai. Ainda estudante participa no MUD juvenil, e conhece figuras como José Régio ou Fernanda Botelho. 

Publica os seus primeiros ensaios, designadamente nas revistas Seara Nova e Ocidente. Dirige as folhas de poesia Távola Redonda (1950) e publica o seu primeiro volume de poesia, A Secreta Viagem. Foi professor na Escola Comercial de Veiga Beirão e no Liceu de Pedro Nunes, ao mesmo tempo que continuava a publicar ensaios ou poemas naquelas e noutras revistas, como Árvore (1951), Tetracórnio (1951) ou Graal (1956), que com novos títulos começava a afirmar-se sobretudo como poeta e participava de forma activa na vida literária portuguesa, através da intervenção crítica mais ou menos polémica ou da divulgação de poetas da sua geração e das gerações anteriores. Participou com textos numa obra importante, Dicionário da Literatura, (coordenado por Jacinto Prado Coelho) em 1960 e de 1969-71. 

Foi assistente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.  Como professor marcou várias gerações de estudantes na regência das cadeiras de Teoria da Literatura e de Literatura Francesa I e III. David Mourão– Ferreira participou na sociedade do seu tempo de uma forma ativa e empenhada. Alguns dos seus textos chegaram ao cinema e ao teatro e teve um grande influência na música tradicional de lisboa, concretamente o fado. Compôs inúmeros poemas que foram cantados por Amália Rodrigues, como “Barco Negro”, “Primavera” , “Libertação, “Primavera” ou  “Ando o sol na minha rua”.

David foi secretário de estado da cultura entre 1976 e janeiro de 1978, eme 1979. Trabalhou em vários jornais e teve uma presença importante na televisão, como “Imagens da Poesia Europeia”. Foi ainda Diretor das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian. E foi professor. Um professor que se destacou junto dos seus alunos por lhes dar uma formação teórica, que se aliava a uma grande capacidade de diálogo, testemunho de um gosto pela literatura, pelos alunos, numa ideia sentida pela partilha. 

Propunha uma comunicação de afeto e de exigência, que se articulava nos aspetos formais e no gosto de articular as ideias em palavras, onde os arquétipos culturais se organizavam de forma sublime. David Mourão-Ferreira era assim um mestre, no sentido de condução que dava aos seus alunos, neste reino da palavra e das ideias pensadas e sonhadas. Foi em Bari um professor reconhecido e lembrado, como o seria como poeta, prosador e uma pessoa de um grande reconhecimento por essa dádiva máxima, espantosa que é viver.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Leituras - Carta ao futuro

O que era o País e o mundo em 1957? À excepção de Sophia e de Jorge de Sena, o País era na década seguinte ao fim da 2ª Grande Guerra a manipulação cinzenta de uma fantasia de crianças. O Mundo após o terror alemão conduzido pelos nazis emergia no que alguns consideravam o homem novo, os amanhãs que cantariam. 

Em fins da década de cinquenta o País e o mundo eram a mais profunda sonolência, uma anestesia de vontade por algo que significasse decência e humanidade. É desse ano que Vergílio Ferreira escreve um livro que devia figurar nas estantes de qualquer pessoa com sonhos de compreender a vida e ter nela um papel substantivo.

Vergílio tornou-se mais conhecido. Um pouco mais. Não muito mais. Pois ainda é possível ouvir doutores da formalidade invocar a sabedoria de sebentas, onde palavras comuns desenham gramáticas de compreensão pouco empenhadas nesse sentido que  foi a sua escrita. A da justamente invocar a nossa verdade emotiva, aquela que nos faz apreender o mundo, por cima de códigos ideológicos, ou de confissões do nada. Vale a pena lê-lo. Ele foi um percursor da substância que mora em nós, um leitor da brevidade e da magia de estar vivo.

Com Vergílio Ferreira aprendemos a difícil ética de sermos humanos, compreendemos a necessidade absoluta de olhar o mundo através de um sentimento estético, que apenas a arte nos permite obter. Com Vergílio percebemos que a leitura do mundo faz-se pela nossa emotividade, a quilo que nos faz ter sentido, "a verdade humana" que nos orienta. É no nosso diálogo com uma dimensão estética da vida que o mais essencial de nós se afirma. Nos cem anos do seu aniversário percebamos tão grande lição dada quando muitos gritavam revoluções e impérios universais. Obrigado amigo!

domingo, 31 de janeiro de 2016

Leituras - O Estrangeiro

Título: O Estrangeiro
Autor: Albert Camus
Edição: ..ª
Páginas: 96
Editor: Livros do Brasil
ISBN:
9789723829235
CDU: 821.133.131"19".3-1"19"



Sinopse: O Estrangeiro, primeiro livro de Albert Camus ficou como a sua obra de referência e um dos livros marcantes para reflectir sobre a sociedade contemporânea e em particular a do século XX. Publicado no tempo da 2ª guerra mundial daria a possibilidade de acesso ao Nobel da Literatura em 1957 a Albert Camus. Partindo do falecimento da mãe, situação que sempre na vida nos acaba por acontecer é gerada uma narrativa que levará  a personagem a contar-nos um conjunto de acontecimentos que o conduzirão a um processo de enfrentar a lei e a justiça. 

Narrado na primeira pessoa, vemos uma personagem de nome Meursault a contar a sua vida que se defronta com uma realidade sem sentido. A ideia de uma existência humana conduzida pelo absurdo, marcado pela ausência de uma demonstração afectiva de preocupação pelos outros conduziu a uma aproximação de Camus a Sartre. Todavia importa reconhecer que Camus não seguia as ideias do Existencialismo, mas procurava pensar o absurdo em que as vidas humanas se organizavam.

Colocado perante as questões do julgamento, Meursault não procura interpretar os seus actos, mas falar apenas o que pensa sem se preocupar com o resultado dessas afirmações. Os seus diálogos com o padre para uma procura de sentido moral são recusados e tudo configura  um não sentido da existência humana. Sem valores de referência Meursault dá-nos uma imagem de um niilista que é absorvido pela existência com profunda indiferença. A indiferença de Mersualt é a denúncia de quem não aceita os valores morais de uma sociedade. É no fim o abandono a que cada ser humano acaba por sentir perante regras morais que não compreendem essa verdade interior de cada um. 

Mersault é o protagonista, mas nós não sabemos se ele se afirma como um herói ou um anti-herói. As suas palavras não se albergam na razão ou num sentimento, apenas um sentido niilista de valor passivo. Na ausência de uma explicação existe apenas a descrição do que se vive, um desespero que procura encontrar uma verdade. E é essa procura pelo leitor, cujo significado não encontra que torna o livro tão fascinante. Numa paisagem quente, abrasiva de luz queremos compreender um estrangeiro e não conseguimos, queremos datar um processo de análise e não é possível, como não o é possível esquecê-lo. O Estrangeiro é em muitas configurações cada um de nós em trânsito num tempo absurdo de significado.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Marcelo Rebelo de Sousa ou a direita do costume


Sed omnia praeclara tam difficilia, quam rara sunt".
(Mas todas as coisas excelentes são tão difíceis como raras"  (Espinosa, Ética).

Sophia que perseguia uma condução ética da vida, a unidade do visível e o mistério das coisas disse um dia, em espaços cívicos de palavras pensadas e amadas que a política é um capítulo da moral. Escrevemos a palavra liberdade com pouca dignidade e ainda menor decência. A liberdade é a na sua essência a própria dignidade. É esse valor que nos dá uma dimensão humana e que prescinde desse critério de vida, factor de uma civilização de sombra que a direita sempre persegue, "o lixo do luxo". O bem como condutor dessa expressão de liberdade é estranho à direita. O seu pragmatismo ideológico não conhece essa raridade que Goethe exprimiu na sua expressão "nobreza de espírito".

Sem espaço para a dignidade humana a liberdade perdeu o seu significado, o sentimento transformou-se em objectivo. O eterno perdeu o seu simbolismo e tudo se constrói como se todos fôssemos iguais. A arte é o entretenimento da matéria, a relativa moral de cada um. A perseguição do lucro tudo justifica, mesmo que seja só para os burocratas de serviço. Cada um deve ser por si. O bem comum perdeu-se em guerras individuais em que tudo é permitido. Não se pergunta mais é justo, é aceitável.

Foi esta construção feita no País entre 2000 e 2015 por funcionários sem uma cultura humanista e meramente tecnocrática que sucessivos governos e instituições têm legitimado. Do sucesso econométrico construiu-se um caos que suporta todos os oportunismos, onde chicos-espertos vencem e onde o sofrimento alheio é irrelevante. Aníbal Cavaco Silva que despreza a memória e a história é um dos baluartes deste mundo para o qual ditou conselhos, sem nunca se comprometer com uma ideia sobre as pessoas. Sem consistência social formalizou com políticos um canibalismo económico que destruiu a maioria e consagrou o poder de uma minoria que concentra o poder político e económico.

Um País arrastado para o gosto fácil dos media, esvaziado da cultura e da identidade de um território separou gerações e deu o acesso a que uma plenitude de valores individualistas superassem no pior sentido o valor de uma comunidade. A escola serviu para construir uma política educativa técnica sem a formulação de uma educação de valores, nem preocupada para uma ética do outro, o bem comum. O fundamentalismo da escola privada com a construção de uma minoria de valores de ausência para com o outro criou essa distorção social, o meu grupo e os outros, os pobrezinhos de fim-de-semana.

O que o Pais é nas últimas duas décadas é o assombro regressado de séculos anteriores, "A democracia sem valor nem mérito, a omnipotência do dinheiro, o império de uma educação sem alma, inspirada por ministros de olhos numéricos e mente vazia, o esboroamento dos antigos valores humanistas europeus da generosidade, da honestidade e da espiritualidade (Real, 2015)". O País derrotado pelo Estado refugia-se em figuras, como protótipos do que não consegue ser. Cristiano Ronaldo, Joana Vasconcelos ou José Mourinho são a iconografia do País sem rosto.

Marcelo Rebelo de Sousa foi nos media o justificador deste País. Nunca construiu ideias de pensamento que não fosse esse alargamento do poder de uma minoria. Apesar dos monólogos nunca foi pedagógico, apenas mantendo os contornos deste caos, gracejando e virando-se para qualquer lado sem verdadeiro compromisso. A rábula da interrupção voluntária da gravidez feita por Ricardo Araújo Pereira ou a sua resposta que vota como qualquer um, num clube de futebol (Entrevistas, 2015) diz-nos tudo sobre esse tempo velho de apaziguar a maldade de sucessivos governos. Os seus monólogos foram apenas a forma de se conciliar tudo, mantendo as suas preferências de sempre - o seu clube ideológico.

Existe em Marcelo Rebelo de Sousa valores como a confiança e a imparcialidade, a independência ou os valores constitucionais? Todos sabemos que não. A sua eleição não é dependente das suas ideias, mas do vazio de palavras sem significado, como foram as de Aníbal Cavaco Silva. Os debates revelaram palavras de pura demagogia como dizer que outros "candidatos representam metade do País", quando ele é isso mesmo, apenas superado quando diz as graçolas em  televisão de programas descartáveis. A sua eleição é o aplauso de televisões, jornais e comentadores. Nestes actores nunca se viu a condenação da cultura dominante que cultiva a impunidade. O País em si, a resposta necessária para superar o caos reinante precisa de incentivos e respostas que não moram no professor de Direito. O País não precisa de políticos que só querem ser porreiros. Precisa de quem queira traçar um rumo com as pessoas.

domingo, 17 de janeiro de 2016

Adormecer a noite



Goodbye love (...) 

There's a starman waiting in the sky 
Hed like to come and meet us 
But he thinks he'd blow our minds 
There's a starman waiting in the sky 
Hes told us not to blow it 
Cause he knows it's all worthwhile 
He told me: 
Let the children lose it 
Let the children use it 
Let all the children boogie (...)


David Bowie, Starman, (1972). Pareceu ontem e foi o início de um caminho, as palavras e os gestos para definir a possibilidade da diferença existir. Palavras e gestos para reunir o que podemos saber entre o momento sagrado e fascinante da vida e a efemeridade que o nada contempla. Thanks David! Take care!