quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Nas palavras de um mensageiro

O céu anunciava~se cinzento, como uma catedral larga e fria, de pura neblina, uma dança de alturas. A cidade oferecia-se como um desejo, as promessas dos homens em santuários de ruas, como uma indecifrável espera. Ouvem-se palavras milenares, de um mensageiro. Terry pensou, - pode um mensageiro renascer todos os anos, durante dois milénios? Pareceu-lhe que não. 
Então, algo se lhe afigurou essencial, - não se tratava de uma mensageiro, era um Deus, pois só uma divindade poderia renascer todos os anos. Um Deus sem homens, as palavras repetidas que sacerdotes souberam transformar numa ciência de pedras erguidas. Todo o ritual das palavras ensaiadas em livros escritos em silêncio esquecia esse desejo antigo de pescadores, a libertação dos mais pobres, os oprimidos da terra. E ele na verdade morreu a anunciar na voz do vento todo o rasto de um amor que os edifícios de pedra não conhecem. 
Do seu corpo belo e puro nasceu uma religião, fundamento de poder e o seu sangue viveu para uma mensagem de homens, não de deuses. Celebrado como um Deus ele é o mensageiro do que os homens não compreendem. Em simulacros de amor, uma legião de crentes, os admiradores das catedrais esquecidas de misericórdia vivem a intermitência, como um presente esquecido. Vivem no absoluto desconhecimento dos homens, a sabedoria deixada por um mensageiro, o Deus dos seus túmulos, não o homem que adormecia nas águas os beijos do rosto. 
Em dias esquecidos de um tempo por contar, palavras antigas parecerão a esperança inconclusiva aos homens, a sabedoria acumulada em pedras que não resgatam o amor de todos os que se perderam em torres de silêncio, em gestos sem rosto.
Imagem: © - Ben-Hur (1953, relaização de William Wyler).

domingo, 13 de dezembro de 2015

Sobre o medo...

Existe sempre este medo, este pânico de não pertencer. Este desejo constante e persistente de querermos que nos olhem com respeito, com admiração, de não sermos vistos sozinhos, perdidos, sem direção. Queremos ser aceites. Queremos acordar com algum intuito, viver por alguma coisa e adormecer concretizados. Queremos todos isto com muita força, mas existe sempre este medo de fracassar. Medo de que não valha a pena. Medo da ausência de sentido no esforço que fazemos para deixar de ter medo.

Existe o medo que pode ser uma ponte para o melhor que há em nós, porque nos faz reagir e superar, sermos melhores e termos coragem! Existe o medo que pode ser uma ponte para o pior que há no ser humano, o medo mais cego, o desespero mais vulnerável, fruto do desprezo, da segregação, da distância, da revolta. Medo como bomba-relógio,atada à cintura, pronto a gritar para que todos o ouçam. Medo como arma, como metralhadora nas mãos de um jovem de Massamá que finalmente pertence, que finalmente acha que encontrou razão para acordar de manhã e o olharem com respeito. 

Há o vídeo desse jovem de Massamá a falar de matança porque agora já pode gravar vídeos, porque agora já pertence a alguma coisa, porque agora já sente o  orgulho de ser aceite pelos novos amigos, ou por um Deus qualquer, seja ele qual for, mande ele fazer o que for, mas que o aceita. Há  este desejo imensurável de ser aceite. Este desejo constante, em  todos nós, que pode ser a ponte para o melhor de nós, que pode ser a ponte para o pior de nós. Existe toda uma geração presa a redes sociais e à necessidade incessante de ser cool. Toda uma geração que se acha livre, mas que é manipulada pela globalização da cultura cool, das modas cool, das tradições cool, das opiniões cool, dos  preconceitos cool, todo um oceano de selfies que dizem "eu juro que sou isto!! Vejam!! Aceitem-me!! Eu juro que não tenho medo!!". 

Todo  um oceano de contas de Instangram e Facebook e Twitter com jovens a mostrar desesperadamente como ser cool. No meio deste oceano existem contas de Instangram e Facebbok e Twitter de jihadistas que mostram a jovens perdidos de MAssamá como pode ser cool ser jihadista. Existe esta dor de não pertencer a nada, a dor de viver numa sociedade civilizada mas cuja civilização não chega a todos, cuja educação, informação, respeito ou qualquer tipo de amor não chega a todos; num mundo que desvaneceu a própria identidade, a humanidade e espiritualidade e se esqueceu que toda a gente devia ter o direito de ser livre, livre de ter uma identidade e que essa identidade não devia nunca ser avaliada ou incentivada pelo número de likes. Existe este medo de não ter likes...! 

Existe esta tendência de culpar a religião quando uma formação espiritual podia ter evitado tanta coisa; podia ter evitado tanta coisa a consciência de nós próprios enquanto seres espirituais, profundos e divinos, cheios de  bondade, infinitos, com ou sem Deuses a olhar por nós.  Existe sim esta espiritualidade de bolso alimentada por frases feitas postadas em redes sociais e partilhadas como quem acaba de descobrir o  que todos devíamos ter como certo desde sempre: "Nós Somos, Existimos." (1)

Existe esta dor que sinto de acordar de manhã e saber o vazio disto tudo, e não saber que medo é este que todos sentimos, porque fomos nós, cegos ao esvaziar do Novo Mundo, que construímos estes soldados. Prontos a serem recrutados por quem lhes dá outra dimensão para a sua existência, uma dimensão espiritual de que eles nunca ouviram falar mas que os enche de sentido neste mundo efémero; por quem lhes dá uma arma para as mãos, ou uma bomba para a cintura, um grito para gritar e uma saída fácil e cool para deixar finalmente de ter medo.

(1) "Nós somos", de António Ramos Rosa
Tiago Bettencourt, Sobre o medo, in Visão, 03.12.15, pág. 104
Imagem - Copyright: Jaime Carvalho

Na memória dos dias da Rádio - António Sérgio - Viriato 25 (I)

by Lista Rebelde on Mixcloud

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Brel

Neste dia por anos, conjuntos de segundos, de esperas e de sonhos em horizontes tão vastos como o nosso sorriso humano adormecia uma das pessoas mais belas, no seu sentido mais profundo - Jacques Brel!

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Leituras - Uma poética da geografia

«Se escavarmos as nossas memórias de infância lembramos primeiro caminhos, e depois coisas e pessoas - carreiros no jardim. O caminho para a escola, o percurso em volta da casa, áleas por entre fetos e erva verde.» (1)

Toda a nossa história humana se construiu em redor desta escolha, que todos fazemos, entre o desconhecido, a miragem da geografia, o cansaço do corpo nos trilhos do vento e o lugar fixo, sedentário. Entre pastores e camponeses, entre a Geografia e a História, a dúvida no amanhecer e a certeza em todos os dias, eis a escolha que a condição humana tem feito. No essencial, a viagem.

Ela é a marca impressiva, o pergaminho que nos dá o reconhecimento do que somos, a verificação das capacidades individuais nos momentos em que o real, o quotidiano é desordenado pelo azul do céu, o verde das florestas ou o castanho poente do deserto. Poucas coisas, raras, são as que nos dão a oportunidade de fazer a descoberta interior, como as que encontramos nos tons da aurora e do crepúsculo, na brancura das nuvens, na descida de um rio ou na subida íngreme de um trilho de montanha.

É na Geografia que descobrimos a multiplicidade do que somos, tão difícil de explicar. É ela que nos permite o nosso irregular talento por criar a originalidade humana. Perante a dimensão do natural conseguimos exprimir melhor as emoções que numa sociedade civilizada tem demasiados obstáculos ao sentido do ser.

Michael Onfray escreveu um livro fascinante sobre a viagem, as motivações dos viajantes, o desejo de encontro nos vastos espaços, a cartografia do mundo no encontro com a memória e com a palavra.

Um livro que nos faz descobrir como o viajante encerra em si uma liberdade capaz de discutir as certezas dos que vivem instalados num real conhecido, previsível e domesticado pela razão e pelo conforto. As culturas, os homens que na História ousaram construir sob o tempo social, um outro, mais individual, subjectivo, emocional, guiados pela Natureza e seus ritmos conseguiram chegar ao encontro único. Aquele que podemos fazer com nós próprios, num movimento finito, que apesar da mortalidade nos permita comportar como «fragmentos da eternidade» (2)

(1) Bruce ChatwinAnatomia da Errância
(2) Michael OnfrayTeoria da Viagem