quarta-feira, 22 de abril de 2020

Biblio@rs (III)

Zigurate de Ur - Civilização Suméria (4000 a 1900 a. C.)

Entre 4000 e 550 a. C. desenvolveram-se um conjunto de civilizações que se situaram naquilo que ficou conhecido como o Crescente Fértil. Esta zona situava-se na margem oriental do mar Mediterrâneo, ocupando uma área onde hoje se situam o Egipto, a Palestina e o estado de Israel, O Irão e o Iraque. Neste espaço desenvolveram-se um grupo de civilizações que marcam o início da História e que costumamos denominar o Mundo Antigo.

A primeira destas civilizações foi a Suméria. Com a evolução da revolução agrícola e da metalurgia foi sendo construída a primeira civilização urbana. Situava-se a sul da chamada Mesopotâmia, o atual Iraque num território situado entre o planalto iraniano, o Golfo Pérsico e o deserto arábico. A proximidade de dois importantes rios, O Tigre e o Eufrates que tornavam as terras férteis desenvolveu-se uma civilização com um significativo grau de complexidade. 

Áreas como a escrita, a arquitetura, a estatuária, a matemática, a ourivesaria, a cerâmica,  a tecelagem, a metalurgia, a construção de canais, ou a edificação de templos revela-nos uma sociedade já muito estruturada. Suportada por uma organização política designada de cidades-estado, em que cada uma se organizava individualmente na administração do seu espaço urbano, dos campos e aldeias. as cidades-estado estavam organizados no seu poder político através de um conjunto de instituições suportados num rei e em sacerdotes. 

O palácio e o templo administravam o poder através de um rei, juiz e supremo sacerdote que governava em nome de uma divindade protetora da cidade. Os sacerdotes coordenavam as atividades de organização da agricultura e do comércio. Existiam ainda um grupo de proprietários da terra, os notáveis que eram uma forma de nobreza e que eram funcionários do rei.  Com a invenção da escrita nasceu um grupo muito importante, os escribas e que tinham grande influência no palácio e no templo. Mercadores, artesãos e camponeses ficavam na base da escala social, apenas acima dos escravos.

A civlização suméria era políetista (acreditava em várias deuses) para os quais construiu todo um conjunto de edifícios. Os zigurates eram o nome dados aos templos para adoração das diversas divindades. Eram construídos a partir de barro amassado e misturado com areia, palha. Poucos sobreviveram até aos nossos dias e o de Ur é o mais simbólico, pois foi reconstruído a partir das suas ruínas. Pensa-se que tenha sido construído por volta do ano 2100 a. C.

Os zigurates eram torres em forma de pirâmide de grande dimensão e que tinham a função segundo a cultura suméria de permitir que as divindades descessem à Terra. Servia igualmente como ponto de observação dos astros. Tinham vários andares sobrepostos. A sucessão desses andares procurava simbolizar a ligação que existia entre o Céu e a Terra, ligação feita através dos sacerdotes que usavam este templo religioso.

É importante não esquecermos que foi na Suméria que apareceu o primeiro sistema de escrita, necessária para a contabilidade da produção agríciola e das trocas comerciais. A escrita da civilização da Suméria era feita a partir de símbolos e pictogramas que numa fase posterior evoluíram para  uma escrita cuneiforme. Ligada à escrita também se desenvolveu a contabilidade, tendo existido uma  tabuada suméria. 

Com a escrita surgem os primeiros textos, poemas, orações e códigos de organização e administração das cidades. O mais conhecido e de grande valor cultural foi o de Hamurábi feita em estela de basalto e que tinha várias indicações para a vida quotidiana de cada um.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Biblio@rs (II)

Stonehenge é possivelmente uma das construções mais enigmáticas do período a que chamamos Pré-História e que se situa antes da invenção da escrita. Situado no atual Reino Unido, fica a sul do país, a cerca de cem quilómetros de Londres.  Stonehenge é formado por um conjunto maciço de pedras de grande dimensão posicionado numa posição privilegiada para ver o nascer do sol. Desenhado a partir de um círculo, ele está alinhado com o movimento do nascimento do sol no solstício de verão, justamente, quando se realiza o amanhecer do dia mais longo do ano.

 Stonehenge está datado entre 3100 anos a.C a 2075 anos a.C. Neste sentido, enquadra-se no período da Pré-História a que costumamos designar como Neolítico. Desde o Mesolítico, aproximadamente 12.000 anos antes de Cristo que a Terra sofreu profundas alterações climatéricas, com o aumento da temperatura e o degelo dos glaciares, tendo estes recuado para as zonas polares. A fauna e a flora modificaram-se e as comunidades humanas evoluíram de uma economia de recoleção para uma economia de produção, característica que marca o Neolítico.

A agricultura e a domesticação de animais surgida no Crescente Fértil por volta do oitavo milénio antes de Cristo, em zonas nas margens dos rios Nilo no Egipto, Tigre e Eufrates na Mesopotâmia, mas também em zonas da Ásia e da América Central e do Sul fizeram nascer as primeiras civilizações. O surgimento das primeiras aldeias e cidades tornou-se possível pela sedentarização.

A palavra Neolítico significa "nova pedra". Na verdade da pedra lascada passou-se à pedra polida. Criaram-se novos instrumentos para a caça e para a pesca, mas mais aperfeiçoados. O arco, a flecha,o arpão, o machado juntaram-se a outros inventados, como a mó, a roda e os que derivaram da prática da tecelagem, da cestaria e da cerâmica.  Estes nasceram da necessidade de guardar os excedentes produzidos.

A construção de aldeamentos obrigou a à divisão do trabalho, para poderem partilhar o que produziam.  Foi-se criando uma  diferenciação social em grupos ainda pequenos, os clãs. Nesta divisão social os homens surgem ligados aos trabalhos agrícolas, à caça e à pastorícia e as mulheres dedicadas às tarefas domésticas, mas também a algumas tarefas artesanais. Com o crescimento das aldeias foi-se formando uma especialização das tarefas desempenhadas por alguns elementos. Da diferenciação social que era inicialmente uma forma de partilha comunitária, a acumulação de produção levou à criação de riqueza. No terceiro milénio antes de Cristo a riqueza associa-se à organização do poder. É deste período que podemos encontrar o monumento de Stonehenge.

As comunidades do Neolítico praticaram diversos cultos ligados à fertilidade, de modo a assegurar a capacidade de renovação da natureza.  O homem do Neolítico criou divindades que lhe permitiam acreditar poder contar com a natureza para a sua sobrevivência. As estatuetas femininas, mas também de animais reforçavam esses cultos agrários.

Stonehenge oferece-nos um dos mais belos exemplares da cultura megalítica. Trata-se de um cromeleque formado por círculos concêntricos de pedras levantadas ao alto. A arquitetura deu corpo às crenças da fertilidade, mas também na morte era preciso assegurar uma proteção. É ideia comum que a cultura megalítica tinha a função de dar às comunidades humanas a possibilidade de assumirem a consciência das suas dificuldades. Nessa cultura está igualmente presente a reverência perante a Natureza. Stonehenge é um exemplo dessa cultura megalítica.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Biblio@rs (I)

A gruta de Altamira, situada no município de Santillana Del Mar, no norte de Espanha é um das primeiras grandes manifestações da arte criadas pelo ser humano. Foi descoberta no final do século XX e reconhecido o seu extraordinário valor no início do século XX.

As pinturas da gruta de Altamira conduzem-nos ao Paleolítico Superior e terão sido feitos há cerca 14 mil anos. As primeiras comunidades humanas eram nómadas, pois não sabiam produzir alimentos, vivendo da caça, da pesca e da recoleção. Os grupos humanos vivam em bandos dividindo entre si o espaço e as diferentes tarefas. As grutas, os abrigos nas rochas e as cavernas eram os seus locais de habitação.

Estes grupos humanos dedicaram-se a fazer pinturas de cenas de caça, a que damos o nome de pinturas rupestres, pois eram feitas na rocha. As representações têm uma abordagem muito naturalista, sendo os animais captados no desenho, como os via na Natureza. Durante algum tempo pensou-se que poderia ser esta uma tarefa de registo das suas atividades, porque ligadas à sobrevivência do grupo. É hoje consensual que a principal motivação destas comunidades na construção das pinturas rupestres era criar um ritual mágico. Os desenhos representavam uma forma de apropriação de um significado, a caça e a sobrevivência. 

As pinturas rupestres são uma primeira forma de construção de rituais, em que se procurava antecipar a construção de um poder que permitisse caçar algo, do qual dependiam para sobreviver. Representar o animal era de certo modo conseguir caçá-lo e isso conduz para as primeiras formas de uma religião, como construção de uma ideia sobre o quotidiano. As pinturas rupestres estão ligadas a uma nova forma de vida em comunidade que só foi possível com o domínio do fogo, permitindo cozinhar os alimentos e facilitou a iluminação das grutas e cavernas.

O que fascina em Altamira é a forma como foram aproveitadas as formas e as irregularidades do tecto da gruta, que assim permitiu que os desenhos obtivessem um sentido de profundidade e volume. Os desenhos marcados por bisontes de diferentes tamanhos são representados com muito realismo e com bastante detalhe nos pormenores. Os pigmentos usados revelam-se igualmente de uma tonalidade deslumbrante. De salientar que  estas pinturas eram feitas com os materiais que a Natureza oferecia. a saber, pigmentos extraídos de minerais, carvões, gordura e sangue de animal. As cores mais usadas eram o vermelho, com variações de ocre, negro e amarelo.

domingo, 19 de abril de 2020

Biblio@rs - uma viagem pela história da arte

Biblio@rs pretende ser uma publicação diária sobre arte. Com ela faremos uma viagem necessariamente rápida sobre a História da Arte. Com ela tentamos dar uma amostra de elementos da pintura, da escultura, da arquitetura que marcaram a evolução das sociedades. É assim uma forma de assumir a presença em alguns conteúdos, mas também da de dar forma a algo que precisamos muito e que temos perdido no caminho, o sentido do belo e a sua representação na arte.

Ars é uma palavra de origem latina e que procura significar "arte" e que sintetiza em si um conjunto de técnicas e princípios aplicados à realização de uma obra que foi executada com um sentido de perfeição.  O conceito evoluiu muito, desde o período medieval que significava um modo de aprender, sobretudo através de textos, até ao Renascimento que já significava outra coisa. Justamente a capacidade de executar algo que resultava de estudo e de experiência. Hoje a arte é entendida como a atividade que se dedica a criar objetos que pretendem exprimir emoções ou ideias com valor estético, isto é produtoras de um determinado tipo de sensibilidade. A obra de arte é-nos introduzida quando um objeto que se integra num espaço, numa sociedade assumindo-se como algo referente a um produto técnico e mental produzido pelo Homem.

Em séculos passados, se perguntássemos a qualquer pessoa com alguma educação quais eram os objetivos da música, da poesia, da pintura, elas teriam respondido, a beleza. E se nos perguntássemos por que isso acontecia, qualquer um de nós aprenderia que a beleza é um valor tão importante como a justiça, a verdade ou a bondade. No século XX a beleza deixou de ser um valor essencial. A arte interessou-se mais por quebrar valores morais e procurou não a beleza, mas a originalidade. 

Platão achava que a beleza era o sinal que nos levava a uma ordem superior. Vivemos num mundo aspirando a algo que não conseguimos aceder. Uma das formas de aceder a essa dimensão, de vislumbrar essa dimensão divina das coisas é através da experiência da beleza. Esta quando se revela universal concede-nos instantes de eternidade. Essa ligação feita de um modo espiritual é uma forma de aprendizagem e de superação do próprio Homem. É essa viagem feita de um modo minimalista que aqui propomos, porque também precisamos muito dela, nestes tempos de isolamento.

sábado, 21 de março de 2020

Ler e saber no quadro da atual pandemia...

As debilidades do nosso país face à crise da pandemia da covid-19 não se encontram apenas no Sistema Nacional de Saúde, ou no tecido económico, nem na falta de testes ou de ventiladores. Há uma mais invisível, que é a falta de preparação de muitos portugueses para poderem ter um olhar mais sabedor, ponderado, consciente, eficaz para o que se está a passar. Essa debilidade está a crescer à medida que há uma substituição de uma cultura de experiência indirecta (que se obtém nos livros, filmes, etc.), na curiosidade e no saber, por uma ignorância atrevida e agressiva com origem nas redes sociais. Uma protege-nos mais na crise, a outra agrava os factores de crise e não nos protege.

Bem sei do clamor que estas frases, que hoje são classificadas de “elitistas”, suscitam: “Com que então, os livros, em vez da vida?” Mas qual vida? A dos dependurados 24 horas no Facebook e noutras redes sociais? Sim, a vida protege-nos, se transportar consigo experiência, dificuldades, sentido das proporções, riqueza, enfim, “vida”. E se tiver em acrescento livros, filmes, músicas, arte e jornais, ainda mais nos protege. Não é remédio absoluto, mas ajuda.

Há um outro clamor, mais intelectual: mas o que é isso da “cultura”? Sim, são questões complexas e ambíguas, mas, para o caso, basta o senso corrente, mesmo que seja um lugar-comum. Em tempos de guerra, não se limpam armas e toda a gente sabe o que é ser “culto”, mesmo que saiba menos o que é ser ignorante. Culto, interessado pelo mundo, curioso, atento, respeitador do saber alheio, e não necessariamente apenas do saber académico. Não é remédio absoluto, mas ajuda.

Mas, resumindo e concluindo, três coisas contam nesta pandemia: vida, cultura e dinheiro. Infelizmente, estão todas muito mal distribuídas, em particular a última. Mas, pelo menos na cultura, sempre se pode combater a incultura que cresce perante a cobardia e a inércia de muitos que acham que esta é a “realidade” dos nossos tempos e não há nada a fazer. Há e muito. Não é remédio absoluto, mas ajuda.

Quem lê, seja por obrigação, por interesse ou por gosto, está mais preparado para olhar para a pandemia, aprendendo sobre ela mais e melhor. Por exemplo, saber o que é um crescimento exponencial, perceber os gráficos, ler um mapa, ter uma noção sobre os comportamentos humanos em situação de tensão, travar o pânico, entender as informações que recebe, saber distinguir o trigo do joio, conhecer minimamente os mecanismos sensacionalistas da comunicação social e deixar as fábricas de conspiração, intriga e falsidades nos esgotos sociais onde pululam. Como agora se diz, literacias. Não é remédio absoluto, mas ajuda.

E não se trata apenas de conhecimentos científicos sobre as epidemias, sobre as mutações, sobre os mecanismos de contágio, sobre o que é um vírus e como funciona, trata-se de muito mais. Trata-se daquilo em que ler é único, importar experiência indirecta, viver em si o que o mundo dos livros, ficção, poesia, história, transporta. E na literatura e nos filmes também não se trata de procurar apenas ficções que sejam directamente associadas ao tipo de situações que vivemos, como A Peste, de Camus, ou os contos de Edgar Allan Poe (em ambos os casos, livros que têm tido uma grande procura nestes dias), mas muitos outros, seja o 1984, de George Orwell, seja a Montanha Mágica, de Thomas Mann (onde o lugar da tuberculose, o sanatório, funciona como um microcosmos), sejam as memórias e os contos de Tchekov médico, seja, em bom rigor, tudo. A tese é, para usar um exemplo não-pandémico: quem leu Cesário Verde não vê Lisboa da mesma maneira que se não o tivesse lido. E, por muito vaga que seja essa experiência estética, é provável que defenda melhor a sua cidade pelo voto, pela actividade cívica, pela opinião. Como em tudo, não é regra absoluta, mas mais vale ter lido do que ter passado ao largo. Não é remédio absoluto, mas ajuda.

O problema é que estamos a andar para trás, e não se pense que isso é assim tão excepcional na história. Os progressistas acham que se anda sempre para a frente, que a humanidade caminha sempre para o melhor, e o pior é incidental. Não é assim, claro; há momentos da história em que tensões sociais, epidemias, guerras, destroem o saber e o modo de vida.

O problema com a ignorância arrogante dos nossos dias começa logo no bloqueio de toda a informação e a sua substituição pela desinformação. Os que vivem nas redes sociais acham que os jornais, os influentes, os políticos lhes sonegam a verdade, lhes ocultam os factos, numa conspiração vinda do Grupo de Bilderberg, da Internacional Sionista, do grupo de pedófilos que governa o país, de George Soros, da Nova Ordem Mundial Maçónica, dos sistemas 5G, de Deus para punir a homossexualidade e a generalizada dissolução dos costumes, seja lá do que for. Todos estes exemplos foram tirados das redes sociais. E o que fazem é disseminar falsas afirmações, teorias conspirativas, boatos e rumores, pseudociência, acusações caluniosas, ressentimentos e invejas sociais, que, por sua vez, são consumidas pelos seus semelhantes num eco especular, que, em tempos de crise, tende a criar um imenso ruído. E a reacção a esse ruído é frágil, porque muitos dos que se lhe deveriam opor nas instituições e individualmente têm soçobrado nessa obrigação.

Uma das grandes forças do livro de Edward Gibbon sobre a queda do império romano é descrever o desprezo pelas ruínas de muitos habitantes de Roma que, muitos séculos depois, viviam nos restos dos monumentos imperiais achando que eram empecilhos – os “romanos eram insensíveis às belezas da arte” – e a humilhação de homens como Petrarca pela “supina indiferença” com que eles eram tratados. Chegados a esta crise, confinados a casa, com os restos da ciência, da arte, da literatura, do saber atacados pelos atrevidos ignorantes, ao menos esta “guerra” tem mais sentido. E ajuda a sobreviver.

José Pacheco Pereira, "Ler e saber ajudam mais a atravessar esta pandenia", in Público, 21/03/2020



quinta-feira, 11 de julho de 2019

Leituras - Nem todas as baleias voam

"I committed crime Lord I needed / Crime of being hungry and poor".  (1)

Existem livros inquietantes capazes de nos contar uma história e de ao mesmo tempo pronunciarem em si um diálogo largo, aberto e pungente entre o real que nos é dado a viver jogando uma dupla viagem, emersa entre o belo e a crueldade mais evidente. Nem todas as baleias sabem voar é um livro de Afonso Cruz composto de múltiplas camadas e de cada vez que chegamos às suas palavras constrói-se um sentido novo feito de significados desbravados por uma história, pelas suas personagens, pelo contexto de uma vida.

Nem todas as baleias sabem voar é um livro sobre Erik Gould, um pianista genial, capaz de ver nas notas, imagens a fluir, como um desenho a revelar-se. É um livro sobre uma vida integrada num projecto que tentou colocar a música como forma de aproximação entre países distanciados pela guerra fria, justamente, o Jazz Ambassadors. É um livro de palavras à procura de um belo dentro da crueldade, da maldade humanas de uma forma entre o poético e uma crueza de significados.

Nem todas as baleias sabem voar é um livro de continuidades e descontinuidades, como quem faz uma viagem informado por dados pessoais a correr no quotidiano de uma história. O livro convida a prosseguir e a parar, remete-nos para imagens de um belo a procurar soltar-se de uma crueldade do quotidiano. É um livro sobre Erik Gould, mas também sobre a sua relação com Natasha Zimina e sobre Tristan numa procura para afastar a dor como algo que incapacita uma leitura fantasiosa do mundo, mas que é também o sinal da presença da vida, do seu afecto num ser humano.

Nem todas as baleias sabem voar é uma obra literária que vale muito pela sua leitura, pelas influências que se descobrem, como a discussão da ideia de Cosmos e do significado da dor e da felicidade em viajantes como nós à procura de um significado para aquilo que fazemos neste percurso. Livro sobre o amor, sobre o seu significado enquanto forma de encontro e de quimera, quando o abandono nos presenteia com essa companhia de nuvem que era o seu olhar.  Um livro para reler várias vezes e nesse sentido é mais do que uma ficção biográfica sobre um homem e o seu sentido de encontrar na pele e na música um sentido para o próprio Universo.

(1) Versos de work song, cantada por Nina Simone.

quarta-feira, 12 de junho de 2019

A burrice como ciência


As últimas notícias sobre o nosso sistema de ensino ilustram quão certeiro foi o pensamento de António Aleixo, poeta do povo: “Há tantos burros mandando em homens de inteligência, que às vezes fico pensando que a burrice é uma ciência”.

1. João Costa veio, em artigo de 30 de Maio passado (Observador), defender-se das críticas às suas teorias sobre flexibilidade e inclusão. Abalroada pela demagogia que a domina, a prosa do secretário de Estado assentou num maniqueísmo primário e populista. Segundo ele, uns querem sucesso e inclusão para todos (ele e prosélitos), outros (os que lhe criticam os métodos), preferem reprovar os alunos. Escapou-lhe considerar que o que separa a turma dele (perita em baixar a fasquia dos pobres em vez de lhes conferir os meios para chegarem onde os ricos chegam) da turma dos outros é a recusa, por parte dos segundos, a certificar a ignorância. E que o grande combate a favor da inclusão começa fora da Escola, sob responsabilidade alheia aos professores, colada, outrossim, à pele dos políticos promotores da mediocridade. E continuará na Escola, quando substituirmos proclamações palavrosas, papéis e burocracia por meios, recursos e dignidade para quem ensina.

2. Outro Costa, este António, fez-me recordar a eloquência de Américo Tomás (nos anos 60, disse o então Presidente da República numa inauguração: “É a primeira vez que estou cá desde a última vez que cá estive”). Afirmou o nosso primeiro-ministro, coveiro da justiça devida aos professores, numa escola de Arcos de Valdevez: “Uma escola são aqueles que estão na escola, que vivem, trabalham e estudam na escola. No início de final do ano lectivo presto grande tributo pelo trabalho que têm desenvolvido e que, mais uma vez, este ano desenvolveram”. Os professores presentes na sala, apesar de bofeteados pelo seu cinismo, continuaram na sala.

3. Leu-se profusamente na imprensa que o Governo criou um regime especial de avaliação para que professores possam progredir na carreira. Ora o Governo não criou coisa nenhuma. Foi a DGAE que “criou”, com uma simples “nota informativa”, uma brincadeira para remediar a trapalhada que o Governo pariu. Ou seja, o homem demitia-se se a AR fizesse cócegas ao OE, para fazer justiça mínima aos professores. Mas não tugiu nem mugiu quando uma directora-geral resolveu (com impacto orçamental) ao contrário do que continua escrito na lei.

4. Com aulas a funcionar, vigilâncias a promover, conselhos de turma em simultâneo, exames nacionais a preparar e instruções a pingar a toda a hora, a vida das escolas foi nos últimos tempos um inferno logístico, a que se somaram as provas de aferição. Excluindo ministro e secretários de Estado, é difícil encontrar quem defenda provas iguais para curricula diferentes, absolutamente estéreis e sem nexo para concluir sobre a evolução do que se aprende, resistindo à sua óbvia inutilidade.

5. O Parlamento decidiu aumentar o salário dos juízes dos tribunais superiores, os quais, a partir de agora, poderão ganhar mais que o primeiro-ministro. Ao fazê-lo, retirou legitimidade moral e ética à retórica da contenção salarial. Com efeito, é inaceitável, no domínio dos princípios constitucionais, que as carreiras das classes profissionais sejam tratadas em função da expressão numérica que as caracteriza, falemos de professores, militares ou outros portugueses. 

E é revoltante que se diga (deputado Fernando Anastácio, apresentador e defensor na AR da proposta socialista, casado com uma juíza, por coincidência do destino relatora do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que absolveu Maria de Lurdes Rodrigues da inicial pena suspensa de três anos e meio de prisão e, por graça de Deus, pai do jovem Pedro Anastácio, membro do secretariado nacional da Juventude Socialista, envolvido, por inveja dos homens, na decantada polémica do familygate do PS), no caso dos juízes, tratar-se tão-só de repor um direito que já existiu, enquanto se ignora, no caso dos professores, o que uma lei em vigor dispõe. Tudo no mesmo Estado, dito de Direito. Aos professores e ao Direito o PS disse não e chantageou com a demissão. Aos juízes e aos costumes de conveniência disse sim e curvou-se servilmente. Pelo menos, ficou ainda mais clara a densidade da ética republicana deste PS.

Santana Castilho, Jornal Público, 11.06.2019
Imagem: Copyright - René Magritte, Ceci nést pas une pipe, 1929, Los Angeles County Museum of Art.