domingo, 12 de março de 2017

Na memória de Raul Brandão (I)

Aqui acabam as palavras, aqui acaba o mundo que conheço; aqui neste tremendo isolamento onde a vida artificial está reduzida ao mínimo só as coisas eternas perduram. (...) O Corvo não tem peso no mundo, mas nunca senti como aqui a realidade e o peso do Tempo.  Sob o seu domínio todos caminham, repetindo os mesmos gestos e as mesmas palavras, e arrastando o mesmo fardo sem levantarem a cabeça nem desatarem aos gritos.

Estas figuras despidas e trágicas são tremendas como problemas insolúveis. Erguem-se diante de mim, e arredo tudo, esqueço tudo para os interrogar. Não que eles me saibam responder - eu é que hei-de responder a mim próprio, porque foi isto que me trouxe ao Corvo (...)

Um clima ríspido. De Inverno o salitre entranha-se nos homens e nas pedras. Quase sempre chove. (...) O céu amanhece sempre nublado; se clareia até às dez horas temos sol, senão conserva-se todo o dia forrado de névoas. Ventanias ásperas varrem o morro. O céu muda de aspecto todos os dias e quase a todas as horas. À tarde aquela fumarada espessa despega-se lá de cima e arrasta-se sobre as pedras. Para além o céu azul está quase límpido, mas a nuvem, que se não sabe donde vem, toma todas as formas, e, sempre da mesma cor, fixa-se e não larga os montes do Corvo.

às vezes pára, volta atrás, introduz-se nas gargantas e nos vales, dotada duma vida estranha. Sempre nuvens, sempre vento e em cada ano dois meses de Verão. às vezes um ciclone. Juntem a isto o ruído eterno do mar que ecoa nos paredões e nas almas. O sentimento é de tragédia. Tudo se curva às leis essenciais da natureza neste rochedo vulcânico, erguido no meio do mar amargo, e com espigões de granito até profundidades desconhecidas; neste grande desterro, domínio do Tempo, onde a paisagem não sorri nem as raparigas cantam. (...)

As  da necessidade impõem-se no Corvo como em nenhuma outra 

parte que conheço. É a solidão que as impõe, é a solidão que lhes ensina a ordem, a disciplina ou os sentimentos cristãos? Nós, se não conseguimos suprimir o tempo, arredamo-lo. Eles não. Também só aqui entrou em mim como uma realidade o que esta palavra quer dizer: o pão. (...)
Aqui não há desgraça - aqui não há fome - aqui não há injustiça. E, no entanto, eu não suporto a ideia nde ficar no Corvo, que tem alguma coisa de monástico, de conventoi erguido no meio do mar. O bem talvez - a vida mais pura talvez - menos sofrimento talvez - mas também eu quero ser deus, embora me dilacere e sofra!...

E este debate, que me não larga, enche-me de tristeza.
A pedra é negra, a vegetação utilitária, a vida, grosseira mas com uma religiosidade como nunca vi em outra parte. Estes seres isolados no mundo - unem-se. Num Inverno em que até os aguarelhos, que vivem no mar, morrem se não emigram a tempo, eles encontram refúgio no sentimento cristão de irmandade, que lhes faz suportar a repetição dos mesmos gestos e dos mesmos actos grosseiros durante toda a existência e o abandono a que estão votados. Melhor: amam a sua ilha. Quando as raparigas embarcam para a América até das pedras se despedem abraçando-as. O Corvo é um mundo.

Raul Brandão. (2011). As ilhas desconhecidas. Lisboa: Quetzal, páginas 36, 49, 50 e 51; Imagens - Copyright - Oliver Schaef

sexta-feira, 10 de março de 2017

Leituras - O capitão saiu para almoçar ...

"somos feitos de papel (...). É preciso sentir mais, pensar menos" (1).

O capitão saiu para almoçar e os marinheiros tomaram o navio reúne uma selecção de registos em forma de diário que  Charles Bukowics escreveu entre 1991 e 1993. Nome muitas vezes confundido com os poetas da Beat Generation, Charles Bukowics é um dos grandes poetas do século XX, pairando sobre ele a dimensão de um mito que sua vida de vagabundo, de uma marginalidade vivida à margem da sociedade americana durante décadas construiu.

Escritor que fez de uma experiência de vida, o material da sua escrita, dando voz a pessoas que viviam na margem da sociedade, de certo modo os despossuídos da América, entre as décadas de quarenta e setenta do século XX.  A poesia de Bukowics leva-nos pelas palavras que retratam a alienação, o isolamento e a fragilidade da vida um mundo humano dominado pela violência. Escrita nascida de uma vontade de se exprimir no mais livre da sua experiência, alimentada por palavras a arder, a sair de uma tela  e ainda assim a narrar uma arte, uma graça que permita ao escritor desenhá-la com o "andar de elegância de um tigre". 

Palavras nascidas do perigo, do jogo, da fome. Palavras nascidas de uma vida alimentada de múltiplos trabalhos, apenas para se levantar, como uma arte que permita fazer vibrar as palavras e com elas incendiar o que pode ser visto. "The dirty old man", como se intitulou deixou neste seu último testemunho escrito, uma herança literária e filosófica alimentada já não tanto no risco, mas do que de subtil, de nuances e sombras fazem preencher a vida. 

O capitão saiu para almoçar e os marinheiros tomaram o navio dá-nos uma conversa de Bukowics connosco e essa conversação é muito interessante porque ele a faz de acontecimentos rotineiros, peças de escrita saborosa, uma cumplicidade difícil de encontrar. A linguagem é crua, com poucas convenções porque esse é o traço de Bukowics, sempre à procura da chama, de algo que permita uma escrita que faz descer o mundo até cada um de nós. Os recursos do escritor, a sua escrita, a música, os animais, a humanidade observada e uma rotina de esquecimento que entrega o mais visível  a miragens, a vida pouco honrada em si própria. 

Alternando entre a crítica, o sarcasmo e a ironia, O capitão saiu para almoçar e os marinheiros tomaram o navio pode ser a porta de entrada para o universo de Bukowics aos que ainda não mergulharam em palavras à procura do fogo capaz de iluminar "esse palhaço na escuridão" (pág. 23) e, construir o melhor que o mundo tem, "continuar sempre a avançar, à procura de coisas, a formar frases, a divertir-se" (pág. 96). E descobrir um escritor essencial da cultura contemporânea, numa escrita feita de uma combustão interior. Descobrir que no fim a morte tem a mesma gravidade do que o desabrochar de uma flor. É o tempo a renascer, a vida a reconstruir-se. 

(1) - Charles Bukowics. (2016). O capitão saiu para almoçar e os marinheiros tomaram o navio. Lisboa: Alfaguara, página 73.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Leituras - A forma na arquitectura

Sobre minhas ideias políticas direi que fui sempre um revoltado. Nunca esqueci - tinha oito anos - minha avó a dizer para a empregada: "Tira esse pano da cabeça, negra não usa isso". Depois, foi a própria vida a evidenciar suas misérias: o patrão a oprimir o empregado, o amigo mais pobre preterido, o desamparo que aflige nossos irmãos brasileiros e a burguesia ignorante a oprimi-los, ou a se manifestar de forma paternalista e irresponsável. Não podia ter dúvidas sobre a posiçao a tomar, num país em que setenta por cento da população sofre, explorada e perseguida.

Com relação à minha actuação profissional, direi que trabalhei demais, que me sinto um homem que ficou num canto a desenhar sem sentir o universo que o cerca em todas as suas grandezas e mistérios, sem ter tempo para olhar a própria vida e sobre ela divagar, sozinho, como Descartes.Mas estou tranquilo. Afinal, fiz o que pude fazer e não esqueci os que sofrem e com eles, caminho solidário.

Diante da evolução contínua e invejável dos programas que surgem, criandos pela vida e pelo progresso, o arquitecto vem concebendo, através dos tempos, o seu projecto: frio e monótono ou belo e criador, conforme o seu temperamento e sensibilidade. Para alguns, é a função que conta; para outros, inclui a beleza, a fantasia, a surpresa arquitectural que constitui, para mim, a própria arquitectura.

E essa preocupação de criar a beleza é, sem dúvida, uma das caractaerísticas mais evidentes do ser humano, em êxtase diante desse universo. E isso encontramos nas épocas mais remostas, com o nosso ancestral longínquo a paintar as paredes de sua caverna, antes mesmo de construir o seu pequeno abrigo. E o mesmo se repete pelos tempos afora, a partir das pirâmides do Egipto. Arquitectura - escultura, forma solta e dominadora sob os espaços infinitos. 

Pelos anos trinta quando comecei a arquitectura contemporânea se fixava entre nós, com o funcionalismo pontificando, recusando a liberdade de criação e a invenção arquitectural sempre presentes nos grandes períodos da arquitectura. Foi o tempo da planta de dentro para fora, do ângulo recto, da máquina de habitar,; da imposição dos sistemas construtivos, limitações funcionalistas que me não me convenciam ao olhar as obras do passado tão cheias de invenção e lisrismo. 
Não podia compreender como, na época do concreto armado que tudo oferecia, a arquitectura contemporânea permanecesse com u mvocabulário frio e repetido, incapaz de exprimir aquele sistema em toda a sua grandeza e plenitude.

Durante os primeiros tempos, procurei aceitar tudo isso como uma limitação provisória e necessária, mas depois, com a arquitectura contemporânea vitoriosa, voltei-me inteiramente contra o funcionalismo, desejoso de vê-la integrada na técnica que surgira e juntas caminhando pelo campo da beleza e da poesia.
E essa ideia passou a dominar-me, como uma deliberação interior irreprimível, decorrente talvez de antigas lembranças, das igrejas de Minas Gerais, das mulheres belas e sensuais que passam pela vida, das montanhas recortadas esculturais e inesquecíveis do meu país. "Oscar, você tem as montanhas do Rio dentro dos olhos", foi o que um dia ouvi de Le Corbusier.

A arquitectura deve exprimir o progresso técnico da época em que é realizada. E, mais, que não acredito ter a burguesia interesse em resolver o problema da classe operária, que o importante é mudar a sociedade. "Mudar a sociedade". Esta é a forma de base indispensável para a arquitectura mais humana que desejamos. E reclamá-la, a única atitude a tomar, se estamos realmente interssados no problema social.

Disse-o uma vez, "devemos aceitar que quando uma forma cria beleza ela tem uma função e das mais importantes na arquitectura". É o que ainda tenho a dizer sobre a forma na arquitectura, sobre a criação arquitectural que tanto me ocupou por toda a vida, embora interessado em outros problemas, revoltado com a miséria, muito mais importante, para mim, do que a  arquitectura.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Vida Activa - O espírito de Hannah Arendt


"Não há pensamentos perigosos;
Pensar é perigoso em si mesmo" - Hannah Arendt

Título original: The Spirit of Hanna Arendt
Realizadora: Ada Ushpiz
Género: Documentário
Produção: Israel / Canadá, 125 minutos, 2015

Vida Activa, O espírito de Annah Arendt é um documentário sobre o pensamento político e filosófico de Hannah Arendt (1906-1975). O documentário tenta contextualizar as reflexões de Hannah Arendt sobre um conceito que ela própria criou, "a banalidade do mal". Vida Activa, O espírito de Annah Arendt faz uma leitura cronológica da sua vida nos seus marcos mais importantes, a vida na Alemanha, a emigração para França e depois para os Estados Unidos ao lado dos acontecimentos que viveu e destacando as figuras com que se relacionou, com destaque para Karl Jaspers e Martin Heidegger. O filme fez parte da selecção oficial da selecção do filme documentário em Amesterdão, 2015, integrou o FilmFest de Munique também em 2015 e fez parte da selecção oficial do Jerusalem Festival Film.

O filme é um registo de grande valor histórico e cultural pois coloca-nos de frente para diferentes realidades que importa pensar: 
  1. o conhecimento do que foi o totalitarismo nazi e como o explicamos, como compreendemos os seus mecanismos. 
  2. a ideia de banalidade do mal, o que significa no que foram os julgamentos de Nuremberga e como isso se relaciona com o significado da cultura alemã;
  3. O mal como pode ser ele explicado, a partir de que pensamento, de que acção? 
  4. Vida activa - como a conciliar como uma prática de vida e uma liberdade de ser?
Questões essenciais para compreender o século XX e este século, pois como Arendt assinalou, os sistemas totalitários podem ser eliminados, mas os mecanismos desse totalitarismo podem sobreviver ao seu tempo histórico. Vida Activa, O espírito de Annah Arendt é um documentário a ver várias vezes, pois a intensidade do pensamento de Hannah Arendt é de uma riqueza que nos deixa incapazes de tudo absorver no imediato. É lamentável que dos jornais respeitáveis ninguém arrisque uma análise detalhada sobre o filme. As cartas entre Hannah Arendt e Karl Jaspers são de uma enorme riqueza para a compreensão do que foi o nazismo, esse dilúvio e que arca sagrada sobrou desse holocausto .

Vida Activa, O espírito de Annah Arendt  é uma narrativa fascinante para compreensão de um conceito que nem sempre é entendido, a mediocridade do homem e a sua conciliação com actos abonimáveis, como foi o de Eichmann, mas também para a interrogação do colapso moral que em sociedades respeitáveis não se luta pelas linhas mais básicas da condição humana. É-o também para a compreensão de que quando o pensamento de detém perdemos essa condição, a de construir uma acção. Foi essa a limitação de Heidegger num momento crucial da ascensão do nazismo.

Vida Activa, O espírito de Annah Arendt vale ainda muito sobretudo por nos dar uma pensadora verdadeiramente livre, que não se enquadrava nos liberais, nem nos marxistas, nem nos católicos. Hannah Arendt é o pensamento em acção, a liberdade de construir uma vida que dos escombros do exílio sabe compreender um mundo mutilado. Arendt diz-nos algo essencial, pensar é o que nos define, é um desafio para todos, é a forma de construir a relação de um com o outro, a forma de conceber uma cidade participada. O pensamento é essa possibilidade de reconhecer um passado e um futuro e de descobrir formas de o construir, de o fazer novo para o futuro. É ele que consolida essa massa essencial da condição humana, a pluralidade.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Leituras - A vida no campo

" - A incultura - digo, com o ar professoral que me resta - não será tanto a ignorância como a falta de curiosidade. Portanto, a cultura também não é o conhecimento. O conhecimento  está ao alcance até de um coleccionador. A um coleccionador não se exige empatia. Mesmo um sociopata pode ser um homem de conhecimento.
Fixo-o nos olhos.
- O homem inteligente é aquele que se deixa maravilhar." (p. 203)

A vida no campo é o testemunho de uma experiência, a vida construída num regresso, a geografia, as pessoas, os pequenos instantes capazes de uma redenção essencial. Livro auto-biográfico sobre essa experiência de regresso aos Açores, à ilha Terceira, onde se misturam as memórias, a paisagem que tanto dita da forma de ver e construir com os outros.

A vida no campo procura ainda fazer uma leitura do que significa viver em Lisboa, ser um urbano emprestado à cidade e realizar uma comparação, com o que se pode ser regressando ao lugar de origem. Livro de uma experiência intensa e maravilhada que descobre no quotidiano valores e uma sabedoria evidentes. João Neto escreveu uma não-ficção recorrendo à memória da sua família, aos modos simples da  Terra Chã e deu-nos uma pérola onde descobrimos, quem ainda não o soubesse, que a vida pode ser mais serena, mais viva e mais livre junto da natureza.

A vida no campo convida-nos para um conhecimento com o mais simples, o que nos faz crentes do mais importante, a que respira tranquilidade com os outros, porque a faz connosco, a que constrói esperança e reforça a intimidade. A que junta o Homem e a Natureza, comprovando o poema de Alberto Caeiro, na cidade a vida é mais pequena que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

A vida no campo é um livro de uma imensa luz, com o coração dos que em simplicidade transportam "o nome das coisas". Livro que nos ilumina, portador de uma linguagem emotiva, cuidada e que contribui para o papel da literatura, como evocação dos esquecidos, que em gestos de afecto nos salvam por nos aproximarem da essência perfumada do silêncio.

sábado, 28 de janeiro de 2017

A bullshit universe - Trump world

Imaginem uma mistura de um comentador anónimo cheio de fúria com todos que não são ele próprio com um troll da Internet e alguém que vive entre “gostos” e conflitos nas redes sociais, um participante num reality show, um espectador obsessivo de televisão do crime, do sangue, dos escândalos, dobrado de um dos banqueiros que nos fez chegar à crise de 2008, um dos empresários que faz parte da lista das imparidades da Caixa, do BES, de tudo quanto é banco e continua a viver como se nada fosse, um menino mimado, um bully que se sente impune para ameaçar quem quiser e tem alguns meios para ser temido nessas ameaças. Ao fazer isto tudo, ou algumas destas coisas, ao ter alguns destes vícios e obsessões, fica-se a pensar e a actuar de uma determinada maneira? Claro que fica. E não é boa.

Pois deitem salvas e foguetes, uma personagem destas chegou a Presidente dos EUA. É um populista e um demagogo clássico? Também é, mas é mais moderno do que clássico, mais novo do que antigo. Esqueçam a senhora Le Pen (não, não esqueçam), um produto reciclado da extrema-direita francesa, uma das que têm maior história na Europa, porque Trump é outra coisa, com outra história, outros know-how, outros riscos enormes para a democracia e a paz do mundo. Trump é um populista e um demagogo, mas também é um revolucionário, quer realmente mudar as coisas, nem que para isso tenha de levar tudo à frente. Para onde as quer levar sabemos pelos slogans e as intenções, mas eu aconselhava toda a gente a tomá-los à letra, mesmo quando contraditórios. Quer fazer da América “grande”; quer “dar voz” aos danados da terra do rust belt; quer dar aos empresários tudo o que precisam para deixarem de se preocupar com impostos, com a regulação, com tudo o que lhes dificulte ganhar mais dinheiro e fazer mais fábricas, mais empresas, mais automóveis, mais pontes e estradas; quer expulsar os “outros”, milhões de estrangeiros ilegais, que diz estarem nos EUA, quer-se dar bem com Putin, que acha que é como ele, esperto, audaz, sem regras, e não está disposto a ter de pagar a defesa dos europeus, nem dos japoneses, nem dos coreanos, nem de ninguém que não seja americano.

Mais do que querer controlar como nós pensamos, quer forçar-nos a pensar como ele pensa. Se não vão a bem, vão a mal. No seu mundo, a sua opinião sobre as coisas é equivalente à verdade, uma atitude muito comum nas redes sociais e usa todos os meios para que, se não conseguir que só a sua “opinião-verdade” circule, pelo menos que circule com o mesmo estatuto dos factos. Há vários exemplos típicos de como se perde qualquer conteúdo neste tido de comunicação. Comunica-se apenas a força, mais nada. Depois de ter feito declarações ofensivas para as mulheres várias vezes, quando confrontado, repete à saciedade que “ninguém mais do que [ele] respeita as mulheres”. Repare-se: “ninguém mais…” Fez o mesmo com os serviços de inteligência. Depois de lhes ter chamado “nazis”, foi à CIA dizer que “ninguém mais do que [ele] preza os serviços de informação”- Repare-se, de novo: “ninguém mais…” Tudo se torna opinião – insisto, como nas redes sociais – e num mundo em que a opinião, a impressão, o “achar” substituem os factos pela força do número e a amplitude do vozear. A racionalidade é expulsa. Domina apenas o pathos.

A relativização do espaço público torna-se total e isso faz depender o que cada um pensa apenas da força de quem tem mais força. O bullying na informação é um factor fundamental da “experiência Trump” para varrer o espaço público dos factos incómodos e mostrar que apenas uma voz tem força – a sua. É um dos sinais mais preocupantes da tendência para o autoritarismo em Trump. Veja-se a utilização do Twitter. Trump usa o Twitter para dar notícias, para emitir opiniões e para fazer uma espécie de decretos presidenciais. Nada do que ele faz é novo, tudo são formas clássicas de comunicação. Se, em vez de dizer no Twitter “Amanhã haverá novidades sobre segurança nacional”, os seus serviços de imprensa fizessem uma nota dizendo “O presidente Trump anunciará amanhã numa visita à sede de CIA novas iniciativas sobre segurança nacional”, o conteúdo seria exactamente o mesmo. Se fizesse uma declaração à imprensa à saída ou à entrada de uma reunião, como é habitual acontecer em Portugal, dizendo que é um escândalo a CNN manipular o número de pessoas na tomada de posse, é o mesmo que no Twitter dizer as mesmas palavras, sem tirar nem pôr. O uso do Twitter para anunciar uma decisão é o mesmo que emitir uma “ordem executiva” que depois assina em papel numa pasta de couro emoldurada a ouro. 

Nada disto é novo, só teve um upgrade tecnológico que lhe dá uma dimensão nova e essa dimensão tem sérias consequências sociais, culturais e políticas. Ao escolher um sistema de mensagens que tem o limite de 140 caracteres, Trump está a fazer uma declaração, um grito, uma ordem, mas prescinde de qualquer explicação racional para o que está a dizer, porque não cabe na mensagem, nem ele o quer fazer. Mas está também a falar do local do poder, a tornar puramente pessoal a comunicação e a pretender fazê-lo sem mediação. Aqui está outra coisa em que ele é moderno: para ele não importa, nem ele deseja, que haja qualquer mediação que “inquine” a sua voz. É ele e o “povo”. O Twitter substitui a comunicação social.

Todas as suas declarações e medidas são quase sem excepção inaceitáveis numa sociedade democrática, e não adianta dizer que tudo foi sufragado pelo “povo” em eleições. Uma democracia, vale a pena estar sempre a repeti-lo, não é apenas o voto – é também os procedimentos e o primado da lei. O modo como fala de deportar os ilegais só pode ser feito com um enorme reforço policial e campos de concentração. E depois onde é que os deixam? Na fronteira com o México? Atiram-nos ao mar para eles regressarem à Síria ou ao Brasil? Deportar dois milhões de pessoas não tem precedente desde a Segunda Guerra e não pode ser feito em tempo de paz sem uma mudança estrutural do Estado, tornando-o um Estado policial. O modo como fala da tortura viola várias convenções sobre a guerra e as declarações de direitos humanos que os EUA assinaram, para além de que qualquer militar lhe dirá que isso expõe os soldados americanos ao mesmo tipo de práticas. As guerras não são só com o ISIS, que não conhece qualquer regra, mas com outros inimigos, que estarão agora à vontade para aplicar aos americanos os mesmos métodos. A Administração Trump ficará igual aos torcionários argentinos e brasileiros.

A imediata ameaça e chantagem às empresas que trabalham fora dos EUA, às cidades que se recusam a entregar informação sobre emigrantes ilegais que nelas habitam, como Nova Iorque, ou que se recusam a aceitar as políticas de discriminação religiosa contra os muçulmanos, a todos os sectores da administração ligados a políticas de natalidade, de controlo dos nascimentos, de igualdade de género são também mais típicas de uma governação autoritária do que democrática.
Trump quer fazer o que quer sem qualquer entrave. Não é um democrata, não é um liberal, não é um conservador, nem um fascista, nem um nacionalista, é um demagogo revolucionário, egocêntrico e autoritário, que só ouve a voz do seu próprio sucesso. E, como sucesso não lhe falta, essa voz soa-lhe bem alto. Milhões de americanos já entenderam que com Trump a resistência tem de ser imediata e constante e não pode ser complacente ou adiada. Como Trump tem com ele também muitos milhões, o ambiente político nos EUA é de cortar à faca e vai-se agravar todas as vezes que ele abrir a boca, e vai abri-la todos os dias, porque precisa de um contínuo fluxo para alimentar o seu estilo revolucionário. Menosprezem-no e pagarão um preço bem alto.

José Pacheco Pereira. "Trump, o rei dos tempos modernos", Público, 28.01.17
Imagem - Copyright, Los Angeles Times

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Leituras - Apologia do ócio

"A devoção perpétua ao que o homem considera o seu trabalho só pode ser sustentada negligenciando todas as outras coisas. E não é de forma alguma uma certeza que o trabalho de um homem seja a coisa mais importante. De uma perspectiva imparcial, parece evidente que muitos dos papéis mais sábios, virtuosos e proveitosos no teatro da vida são desempenhados gratuitamente, e são vistos, pelas pessoas em geral, como produtos de ócio." (1)

"Apologia do ócio" e "A conversa e os conversadores" são dois pequenos ensaios de Robert Louis Stevenson publicados em 1887 e 1882 na revista Cornhill Magazine e agora editados pela Antígona sob o título, Apologia do ócio.

Stevenson é um dos grandes  nomes da Literatura anglo-saxónica tendo deixado páginas muito significativas na leitura da alma humana, em duas obras marcantes, A ilha do Tesouro de 1883 e O médico e o monstro de 1886. Conhecido como um exímio contador de histórias e um infatigável viajante dá-nos em Apologia do ócio, um pequeno livro cheio de da vida mais luminosa que ainda é possível os seres humanos cultivarem.

No 1º ensaio Stevenson com aproximações a Thoreau explica-nos o valor cultural do ócio, um instrumento para cultivar uma arte de viver, onde a satisfação e a alegria possam enriquecer individualmente cada um, mas também a sociedade. A palavra ócio está impregnada de falsas atribuições, também porque no mundo dito civilizado apenas as actividades lucrativas devem merecer o entusiasmo dos vivos. Há na verdade uma religião social e política que consagra a sua fé a proclamar que os que não se deixam motivar / participar pelo espírito das moedas são gente de modesto valor humano. 

O ócio não é, como geralmente é tratado a pura negação de qualquer actividade. O ócio tem em si o gesto de uma concretização. Coisas que os princípios dogmáticos dos instalados no poder não pretendem aceitar. A indiferença do ócio pelas grandes e árduas tarefas do dinheiro e da conquista é a que fez Alexandre estranhar que Diogénes pela sua conquista de Roma. 

O ócio cultiva uma aprendizagem, a que se realiza nas margens de uma ribeira, junto a um muro de lilases ou sobre as copas das árvores, onde as cotovias abraçam o vento. Essa aprendizagem procura a maior lição de todas, "Paz, ou contentamento" (pág. 17). A aprendizagem assim feita dispensa conceitos e categorias e é por isso que é desprezada pelos grandes "sábios".

O mundo dedicado a uma actividade frenética, a acumulação retórica do saber ou o lucro interminável de vinténs produz pessoas com pouca consciência do seu próprio estado - estarem vivas e reduz-lhes a capacidade de exploração da curiosidade. Há um conjunto de coisas nobres que essa devoção quase exclusiva ao trabalho faz perder. A capacidade de estabelecer uma conversação agradável, a descoberta do mundo natural que nos envolve são caminhos para a construção do "teorema da viabilidade da vida" (pág. 27). 

A sensatez que um homem de ócio cultiva é de uma imensa generosidade, pois o que o mundo precisa não é de doutores a lutar por medalhas, mas pessoas felizes. Pessoas que iluminam espaços e que influenciam positivamente os outros. Apologia do ócio é um livro-pepita, um tesouro para salvar a vida, num mundo escravizado pelo dinheiro, pelo poder e dominado por uma aparente vitalidade.

(1) Robert Lous Stevenson. (2016). Apologia do ócio. Lisboa, Antígona, páginas 23 e 24.