quinta-feira, 28 de abril de 2016

Ver o mundo natural...

Viver longe da natureza é uma forma de nos esquecermos, é uma formulação para uma ausência da nossa consciência. As palavras são breves instrumentos da linguagem que vivem incompletas sem o horizonte que um campo cultivado, uma floresta de abetos permite construir em nós. Ulisses gostava dos trabalhos de cultivo da terra. 

Sophia dá-nos essa ideia, a civilização em que o pensamento se afastou da mão. O que quer dizer que se afastou do corpo. Assim construímos formas de vida feitas de “meias verdades, de meias palavras, exilados de nós próprios” (José Tolentino Mendonça, “Constrói um jardim”, in Que coisa são nuvens”). Vivemos emergidos em formas de vida social, marcados por linhas desumanas, necessidades estranhas que estão distantes, estrangeiras, imaginadas em prateleiras de sonhos de pura burocracia. Somos condutores de experiências que não se formam em nós, não se formulam na nossa identidade.

O mudo de sucesso de todo o empreendedorismo tem conduzido à construção de formas de vida tóxicas, baseadas na produção cega, os químicos destruidores da vida e do crescimento, os tempos dilacerados em estantes de dinheiro fácil. É pois preciso voltar ao campo e sentir as palavras de Tao Qian ditas no século IV, “Em jovem não me adaptava à vulgaridade: amava as colinas e os montes. Por engano, depois, deixei-me prender nas malhas do mundo e assim dispersei muitos anos da minha vida. Mas o pássaro aprisionado tem saudade da antiga floresta e o peixe do riacho recorda quando nadava livre na corrente. Foi quando avistei a sul estes campos incultos. Para preservar a minha simplicidade regressei aos campos. Por longo tempo encerrado numa gaiola pude por fim voltar à minha natureza”.

Voltar à minha natureza, tradução da ideia chinesa de ‘fanzir’, o que significa que sermos nós é sermos devolvidos ao que somos, a revelação a nós próprios. As palavras são insuficientes, pois não condensam toda a verdade emotiva. Pensar o mundo é olhar o mundo, ver o que nos rodeia e construir uma forma de sabedoria. Cuidar de um jardim é uma forma de educação. Os homens letrados da China do século VIII pensavam-no como forma de vida. “Desde que habito aqui, levanto a cabeça e avisto a montanha.

Baixando-a, escuto as fontes. Viro-me para o lado e apercebo-me do bambu, das árvores, das nuvens e dos rochedos. De manhã e ao entardecer eles todos têm uma única voz. Instantaneamente o mundo abraça-me e a minha respiração abandona-se como convém, interiormente e externamente. Depois de uma noite o meu corpo acalmou-se; duas noites e o meu coração encontrou paz. Três noites e sinto-me tão bem que perco a consciência de tudo sem saber como isto se produz. O mundo que me rodeia conduz-me à sabedoria.”
Construir um jardim é pois, a forma de encontrar de uma totalidade de ser.

É a oportunidade para compreender a própria dimensão das nossas falhas, os erros que nos consomem, as fracturas que tentamos remediar num mundo que se quer omnipresente e sem falhas. O jardim é a contemplação de um arranjo que se vê no possível, no que existe, às vezes grande, outras vezes pequeno, mas sempre grandioso. A humildade do que podemos ser e as formas maiores da nossa eloquência constroem-se com uma felicidade que reconhece a si própria. É à nossa volta que se o mundo natural emerge como uma lição maior, uma sabedoria capaz de resgatar formas de existência que se reduzem a ritmos desajustados do coração, o sentido sanguíneo e respirado do corpo.


A partir de um texto de José Tolentino Mendonça, 
“Constrói um jardim”, in Que coisa são nuvens”; Imagem: Copyright - m-ban

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Podcast (1)

Purple Rain

I never meant to cause you any sorrow
I never meant to cause you any pain
I only wanted one time to see you laughing
I only want to see you laughing in the purple rain
purple rain, purple rain 
I only want to see you bathing in the purple rain
I never wanted to be your weekend lover
I only wanted to be some kind of friend
baby I could never steal you from another
it's such a shame our friendship had to end
purple rain, purple rain
I only want to see you underneath the purple rain
honey, I know, I know, I know times are changing
it's time we all reach out for something new, that means you too
you say you want a leader,
but you can't seem to make up your mind
I think you better close it
and let me guide you into the purple rain
purple rain, purple rain
I only want to see you, only want to see you
in the purple rain
Prince, Purple Rain, 1984
Capa - Bob Staake, "Purple Rain", The New Yorker (http://www.newyorker.com/…/culture-d…/cover-story-2016-05-02)

quinta-feira, 24 de março de 2016

Leituras - O tempo, esse grande escultor

"Acordo. Que disseram os outros? Aurora que, cada manhã, reconstróis o mundo; integral nos braços nus que conténs o universo; juventude, aurora do homem. Que me importa o que outros disseram, o que acreditaram. Sou Febo del Poggio, um bobo. Os que falam de mim dizem que sou pobre de espírito; talvez nem tenha espírito. Existo como um fruto, como um copo de vinho, como uma árvore. Quando vem o Inverno, as pessoas afastam-se da árvore que não dá sombra; comido o fruto, deitam fora o caroço; vazio o copo, vão buscar outro. Eu aceito. Verão, água lustral da manhã sobre membros ágeis; ó alegria, orvalho do coração...
Acordo. Tenho diante, atrás de mim, a noite eterna Eu dormi milhões de idades; milhões de idades eu vou dormir... Só tenho uma hora. Havia de estragá-la com explicações e com máximas? Estendo-me ao sol, sobre o travesseiro do prazer, numa manhã que não voltará mais". (1931) - (1)

Há palavras e formas de descrever o que vivemos em tantos tempos do passado e em tantos sonhos do futuro que ficamos apenas deslumbrados, como quando observamos um pôr-do-sol ou a luz prateada da lua nas ondas nocturnas da praia. Marguerite Yourecnar é uma dessas vozes sem tempo, onde as palavras se fazem de inteligência, sabedoria e beleza. 

Em O Tempo, esse grande escultor, reúnem-se um conjunto de artigos que reflectem sobre arte, história, cristianismo, natureza, pintura, ou diversas reflexões sobre o Oriente. Textos publicados desde os anos trinta e os anos oitenta em diferentes publicações e que são aqui reunidos. Livro já com alguns anos, a que vale a pena voltar para redescobrir como o tempo molda tudo, as pessoas, os seus gestos, a sua compreensão e os próprios artefactos da matéria. 

Em O Tempo, esse grande escultor vemos os significados dos movimentos da natureza e o modo como os integramos numa vida cultural e social. Percebemos como as civilizações criam rituais de significado e como somos peças intermitentes de um sonho de humanidade que o tempo marca e que apenas podemos compreender e levantar como um sonho. Aquele que deixamos pela nossa passagem.

(1) - Marguerite Yourcenar. (1984). O tempo, esse grande escultor. Lisboa: Difel, p.23.


terça-feira, 8 de março de 2016

Vinte anos de poder - o regresso do passado

O poder basta-se a si próprio alimentado pela sua cegueira, pela sua autoridade, pelos seus privilégios, pelos seus rituais de sobrevivência de influências, pelo esquecimento do rosto das pessoas. Em dias intermináveis um homem construiu um poder para si, na pura forma cinzenta de uma cidadania sem país, sem pessoas, sem cultura. E por uma vez, por uma vez apenas temos essa alegria da despedida de quem não soube ver que pessoas tinha à sua frente, que esquecimento organizava o que não cabia no bolso ideológico de um passado sem futuro, de um presente sem qualidades. O futuro será diferente? Não sei. Possivelmente com algumas graçolas. O País mudará? Não nasceu ainda a irreverência de pensar nas praias tristes de um povo, cuja não história se faz de intermitências de passado sem futuro. Por um dia, por um dia apenas, é sempre reconfortante ver sair quem não conheceu, não procurou conhecer o que importava mudar. O rosto da beleza e a esperança.

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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Na memória de David Mourão-Ferreira

David Mourão-Ferreira foi um príncipe das letras, no sentido em que detinha um conhecimento muito apurado da, das formas clássicas da Literatura, a que ele deu um grande contributo. David nasceu em Lisboa, a vinte e quatro de fevereiro de 1927, cedo tomou conhecimento de autores que vão marcar a sua obra como Paul Valéry, Marguerite Yourcenar, Marcel Proust, ou José Rodrigues Miguéis, que era amigo do seu pai. Ainda estudante participa no MUD juvenil, e conhece figuras como José Régio ou Fernanda Botelho. 

Publica os seus primeiros ensaios, designadamente nas revistas Seara Nova e Ocidente. Dirige as folhas de poesia Távola Redonda (1950) e publica o seu primeiro volume de poesia, A Secreta Viagem. Foi professor na Escola Comercial de Veiga Beirão e no Liceu de Pedro Nunes, ao mesmo tempo que continuava a publicar ensaios ou poemas naquelas e noutras revistas, como Árvore (1951), Tetracórnio (1951) ou Graal (1956), que com novos títulos começava a afirmar-se sobretudo como poeta e participava de forma activa na vida literária portuguesa, através da intervenção crítica mais ou menos polémica ou da divulgação de poetas da sua geração e das gerações anteriores. Participou com textos numa obra importante, Dicionário da Literatura, (coordenado por Jacinto Prado Coelho) em 1960 e de 1969-71. 

Foi assistente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.  Como professor marcou várias gerações de estudantes na regência das cadeiras de Teoria da Literatura e de Literatura Francesa I e III. David Mourão– Ferreira participou na sociedade do seu tempo de uma forma ativa e empenhada. Alguns dos seus textos chegaram ao cinema e ao teatro e teve um grande influência na música tradicional de lisboa, concretamente o fado. Compôs inúmeros poemas que foram cantados por Amália Rodrigues, como “Barco Negro”, “Primavera” , “Libertação, “Primavera” ou  “Ando o sol na minha rua”.

David foi secretário de estado da cultura entre 1976 e janeiro de 1978, eme 1979. Trabalhou em vários jornais e teve uma presença importante na televisão, como “Imagens da Poesia Europeia”. Foi ainda Diretor das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian. E foi professor. Um professor que se destacou junto dos seus alunos por lhes dar uma formação teórica, que se aliava a uma grande capacidade de diálogo, testemunho de um gosto pela literatura, pelos alunos, numa ideia sentida pela partilha. 

Propunha uma comunicação de afeto e de exigência, que se articulava nos aspetos formais e no gosto de articular as ideias em palavras, onde os arquétipos culturais se organizavam de forma sublime. David Mourão-Ferreira era assim um mestre, no sentido de condução que dava aos seus alunos, neste reino da palavra e das ideias pensadas e sonhadas. Foi em Bari um professor reconhecido e lembrado, como o seria como poeta, prosador e uma pessoa de um grande reconhecimento por essa dádiva máxima, espantosa que é viver.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Leituras - Carta ao futuro

O que era o País e o mundo em 1957? À excepção de Sophia e de Jorge de Sena, o País era na década seguinte ao fim da 2ª Grande Guerra a manipulação cinzenta de uma fantasia de crianças. O Mundo após o terror alemão conduzido pelos nazis emergia no que alguns consideravam o homem novo, os amanhãs que cantariam. 

Em fins da década de cinquenta o País e o mundo eram a mais profunda sonolência, uma anestesia de vontade por algo que significasse decência e humanidade. É desse ano que Vergílio Ferreira escreve um livro que devia figurar nas estantes de qualquer pessoa com sonhos de compreender a vida e ter nela um papel substantivo.

Vergílio tornou-se mais conhecido. Um pouco mais. Não muito mais. Pois ainda é possível ouvir doutores da formalidade invocar a sabedoria de sebentas, onde palavras comuns desenham gramáticas de compreensão pouco empenhadas nesse sentido que  foi a sua escrita. A da justamente invocar a nossa verdade emotiva, aquela que nos faz apreender o mundo, por cima de códigos ideológicos, ou de confissões do nada. Vale a pena lê-lo. Ele foi um percursor da substância que mora em nós, um leitor da brevidade e da magia de estar vivo.

Com Vergílio Ferreira aprendemos a difícil ética de sermos humanos, compreendemos a necessidade absoluta de olhar o mundo através de um sentimento estético, que apenas a arte nos permite obter. Com Vergílio percebemos que a leitura do mundo faz-se pela nossa emotividade, a quilo que nos faz ter sentido, "a verdade humana" que nos orienta. É no nosso diálogo com uma dimensão estética da vida que o mais essencial de nós se afirma. Nos cem anos do seu aniversário percebamos tão grande lição dada quando muitos gritavam revoluções e impérios universais. Obrigado amigo!