sábado, 9 de novembro de 2013

A queda do muro de Berlim

«Duas nações entre as quais não há relacionamento, nem simpatia; que ignoram de tal forma os hábitos, pensamentos e sentimentos da outra parte que parecem habitantes de planetas diferentes. Os ricos e os pobres.» (1)

Vivemos tempos em que a memória é pouco relevante na construção dos dias e como sociedade perdemos a noção do valor que gerações emprestaram às suas lutas por uma sociedade decente, onde os valores humanos representavam a marca de gerações pelo bem comum. Esta descontinuidade com o passado é uma das causas porque olhamos passivamente para a desigualdade social e lidamos com indiferença, perante as dificuldades dos cidadãos que nos rodeiam. É por isso essencial relembrar a História.

O Muro de Berlim é um dos marcos mais importantes da História Contemporânea, pois tem nele o sombolismo de um mundo dividido, após o fim da segunda guerra mundial, onde dois modos de ver o mundo eram tão demarcados no quotidiano. Os traços essenciais.

Até 1961 os habitantes de Berlim, os Berlinenses tinham acesso a circular livremente dentro da sua cidade. Fruto da guerra fria e da migração dos habitantes de Berlim Oriental para ocidente, aquela iniciou a construção de um muro a treze de Agosto de 1961.  A sua construção dividiu ruas, prédios, separou famílias em poucas horas, tinha torres electrificadas, protegidas com arame farpado e vigiava todo o seu extenso espaço com cerca de trezentos postos guardados por soldados.

O Muro representou o pior de um mundo que não respeitava a liberdade individual das pessoas, a sua humanidade perante um Estado policial que segregava os seus cidadãos. Os anos oitenta assistiram ao colapso de uma sociedade que impedia o indivíduo de participar criativamente na organização do seu presente. A ideia de que o Estado poderia regular, tudo, do nascimento à morte veio confirmar o absurdo de um modelo social e político. Os suportes dos regimes a leste, apoiados numa indústria obsoleta e excessivamente ligada à produção de equipamentos militares não souberam resistir às mudanças que foram surgindo. Da União Soviética, à Polónia e à Hungria o sistema socialista revelou-se incapaz de impedir uma mudança.

A 9 de Novembro de 1989, o mundo assistiria à queda de um muro, consequência da vontade de tantos alemães a leste de se mudarem para a parte oeste, processo que se verificou incontrolável. O fim do muro representou o fim de uma hostilidade entre dois blocos e a abertura para um mundo mais livre e mais participativo. Em 1990 as duas Alemanhas iriam-se juntar formando um único País. Mas persistem demasiados muros, erguidos por uma cegueira fundamentalista sem memória. O Muro abriu uma porta que a classe política europeia não soube aproveitar.

Na queda do muro de Berlim participaram, lutaram, viveram e morreram gerações de homens e mulheres que acreditaram na liberdade individual como forma e expressão do desenvolvimento humano e como este é inseparável de uma procura de nivelação igualitária cultural e social. 

O Muro de Berlim é hoje, quase um vestígio do que foi a História da Europa e do Mundo, mas ainda é uma lição para os que se esquecem de como os movimentos sociais são desenvolvidos e alimentados por sonhos individuais. Importa lembrá-lo a uma Europa em decadência acelerada das suas instituições. A uma Europa burocrática, onde o seu modelo civilizacional está hipotecado aos créditos, de um fundamentalismo monetário que dominam a economia econométrica da produtividade. A uma Europa que parece pouco preocupada com os contornos do quotidiano, mesmo quando eles formalizam horizontes autoritários,incoerentes com o direito e  estranhos ao vínculo transformador dos direitos humanos.
(1) Benjamin Disraeli, citado por Jean- Pierra Lehhman

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Livros e leituras - O caderno do avô Heinrich

Título: O caderno do avô Heinrich
Autor: Conceição Dinis Tomé
Edição: 1ª
Páginas: ...
Editor: Editorial Presença
ISBN: 978-972-235130-0
CDU: 82-93


(...) há homens que são loucos  e que,  quando têm o poder nas mãos, aproveitam para concretizar todos os seus delírios e dar voz a todos os fantasmas e ódios que têm dentro de si.  

(...) uma neblina  espessa pairava sobre o parque, ocultando a capa das árvores. A chuva continuava a cair, uma carícia sobre as flores. Nas árvores despontavam as primeiras folhas, tenras e de um verde frágil, e, nos canteiros, as tulipas irrompiam coloridas e alegres, indiferentes à guerra".

" É possível acordar todas as manhãs e começar de novo. Como se a vida nos desse a possibilidade, em cada aurora, de a reinventar e de a transformar. Acho que foi sempre isso que eu tentei fazer. Houve muitos dias em que o consegui e outros em que me deixei apenas arrastar ao longo das horas, à espera de um novo amanhecer. Nesses dias, sempre soube que um livro é o melhor refúgio, como um colo quente ou um chocolate acabado de fazer. Ou um aroma  do pão a sair do forno. E que, dentro de um livro, encontraremos sempre liberdade. 

Conceição Dinis Tomé, O caderno do avô Heinrich, págs. 76, 36 e 53.

Memória de Albert Camus


"Bem pobres são aqueles que precisam de mitos. Descrevo e digo: 'isto é vermelho, azul, verde. Isto é o mar, as montanhas, as flores.' Tenho eu necessidade de falar de Dionísio para dizer que gosto de esmagar bolas de lentiscos debaixo do meu nariz?"  (1)

Há cem anos nascia um dos grandes (a palavra é pobre para o exprimir) pensadores sobre a condição humana. Foi identificado como um dos que pertenceu a um século onde alguns homens pensavam a sociedade ou para indicar possibilidades ou para forjar caminhos alternativos, os chamados intelectuais. A palavra não lhe faz completa justiça, pois ele foi sobretudo uma voz moral, acima da pequena política, das intrigas de palácio, onde soube falar sobre a natureza humana e dar-nos esse ânimo na voz que caminha entre a desistência mais passiva e o não afirmativo, comprometido, solidário por uma causa. A sua causa foi a da democracia da beleza, conceito, nobre à procura de uma revolução, sim a a da vida, como ele também expressou.

Filho de outro continente, das geografias humanas colonizadas, dessa mistura de povos e culturas, filho nas margens da sociedade, cultivou a resistência e o estudo como a verdadeira porta para se ser livre. É assim filho dessa ideia, que a França cultivou de que uma educação republicana, poderia fazer nascer um País desenvolvido. E escreveu sobre nós, as nossas ambições, a fragilidade humana na efemeridade do tempo e os valores morais que devemos vestir em qualquer contexto. Tony Judt chamou-lhe o 'Melhor homem de França' e esta sente-lhe a falta, desde que se tornou passivamente indiferente à contemporaneidade.


Escreveu O estrangeiro, A peste, O mito de Sísifo, Os discursos da Suécia, A morte feliz e O primeiro homem. Foi Prémio Nobel da Literatura em 1957 e é das poucas vozes coerentes do século XX onde podemos ainda ver o caos e a angústia dos tempos modernos como uma forma de expressão da humanidade, da nossa natureza. Compreendeu os limites das tiranias do século XX, antes de algumas das suas vozes mais sonantes e devemos-lhe isso, essa coerência pelo que somos. Caminhou sozinho, com a voz interior de um oráculo que se quer descobrir a si nos outros.

Essa felicidade que procurou, que procuramos, entre múltiplas imagens, na procura da memória mais bela a fundir no sonho, entre o universo visível que nos é dado a ver e a nossa experiência humana. Chama-se Albert Camus e nasceu há muitas décadas para que o visitemos nestes tempos obscuros que exigem um conhecimento de um homem essencial do século XX, de múltiplos séculos, nessa luta essencial entre o absurdo e a revolta, para a construção do possível humano.

(1) citado de Maria Luísa Malato, "Lumières d'Albert Camus

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Livros e leituras - Pensar a multiplicidade do Eu!


Primeiro número de uma revista editada na cultura anglo-saxónica há já alguns anos, apareceu há pouco tempo por aqui, oferecendo-nos textos diversos organizados em torno da temática do Eu. Dirigida por Carlos Vaz Marques, editada pela Tinta da China, são três centenas de folhas com palavras que destacam as variantes possibilidades do Eu, como inaugurador de um mundo inicial. Mundo revelado sobre o que somos capaz de olhar no real, nos outros e em nós.

Dulce Maria Cardoso, Hélia Correia, Daniel Blaufuks, Rachel Cusk, Valter Hugo Mãe e Pessoa inédito, assinam alguns dos mais pertinentes textos/imagens, onde os eus se reinventam, entre  os fragmentos dos dias, o corpo que habita a efémera felicidade, que procura na arte de escrever, a perenidade possível.

A arte no seu sentido mais global, como a ilusão capaz de nos redimir de um tempo que nos escapa. E a velha ideia, quase tão antiga como o homem, que na ficção aumentamos o quotidiano. A palavra é pois esse segredo por uma vida mais completa, mais cheia de possíveis. Este é pois um número para guardar pelos textos que nos revelam diferentes geografias do Eu, num nível nada inferior ao que se lia noutras latitudes atá agora. 

domingo, 3 de novembro de 2013

In Memorian - pelos sonhos do António Sérgio

«(...) Onde os meus gestos são gaivotas que se perdem / Rolando sobre as ondas, sobre as nuvens.» (1)

   As sociedades humanas são feitas por pessoas que apostam em nos despertar para novos caminhos, onde a beleza, a poesia e a imaginação são elementos de uma vida que se procura mais bela e livre. São estas vozes que importa destacar, muito acima da mediatização de certas figuras que inundam o espaço público de comunicação com palavras vazias, contemplando a ambição cinzenta do poder. 

António Sérgio foi uma dessas vozes que procurou colorir o nosso quotidiano com sons novos, alternativos e de uma dimensão moderna. Homem da rádio, foi animador com ideias próprias de sucessivos projectos onde o som, o ritmo e as palavras foram sugeridas de um modo criativo e inteligente.

A geração que foi adolescente entre os finais da década de setenta e os anos oitenta lembrará a sua voz e os seus programas de rádio, na Comercial, na XFM e na Radar. O Som  da Frente ou a Hora do Lobo apelaram a essa diferença na música e no fundo na vida. A sua voz grave e intimista convidavam-nos a habitar uma atmosfera que soube romper com o mediano gosto que em tantas estações proliferaram. 

Foi nesse sentido um homem que abriu caminhos num País cinzento, ainda  a romper com o fechamento de décadas. A esses tempos de memória e ao seu papel formador aqui deixamos o nosso reconhecimento. Obrigado António.

(1) Sophia in Coral, Caminho

(Com o atraso de dois dias, a memória de um homem que nos deu pela música o sonho)

António...

Sobre os livros e a vida
«É curioso isto, porque é e não é. É qualquer coisa que nos questiona, nos pergunta, que nos inquieta, que nos ajuda, que nos mostra a nós mesmos, que nos revela a aparição por debaixo da aparência. (...) Chegar ao interior dos interiores. Descer, onde estamos nós e os outros e nós no meio deles. Ao lermos um livro, estamos a ler uma pessoa também, seja qual for o livro.

Tenho a sensação que quando tenho o livro que eu gosto, estou em conversa com o autor do livro. Não sou só eu que o leio. Estamos lendo mutuamente e conversando e construindo um diálogo que se prolonga. Muitas vezes o livro só começa quando nós o acabamos de o ler e começa a fazer a sua viagem dentro de nós. Os grandes livros prolongam-se na nossa vida.

Os livros, os bons livros não trazem nem personagens, nem histórias. quanto muito a aparência de personagens e de uma história. Não existe profundidade. Há infinitas superfícies e dificilmente chegamos ao ponto central. Alcançamos um fragmento de um espelho. (...) A leitura foi sempre para mim um grande momento de alegria. uma fonte de auto-conhecimento, uma alegria e um deslumbramento, um espanto constante. (...)

«Tenho a impressão que há uma dor aqui no quarto, mas não sei se sou eu que a tenho» (C.Dickens). E até que ponto a dor é nossa, até que ponto a alegria é nossa, porque a nossa vida é feita de perguntas. Quando nós encontramos uma resposta, ela torna-se uma pergunta, que leva a outra pergunta, a outra pergunta. E diante da pergunta está o vazio, que eu espero seja preenchida por outra pergunta e outra pergunta.»

in, http//sicnotícias.pt (Jornal da Noite)

( Há um pensamento imbecil que apenas raramente se interessa pelas pessoas, pelo seu génio, em datas tão banais. Hoje como tantas vezes lembrei-me do António e de algumas das suas palavras, dessa sua ideia de por a vida nos livros).