
Orwell percebeu o caminho para o
mundo actual de fake news, de relativização da verdade e dos factos, da
“verdade alternativa”, do tribalismo, do combate ao saber a favor da ignorância
atrevida das redes sociais, da crise das mediações a favor de uma valorização
da pressa, do tempo instantâneo, do fim do tempo lento, do silêncio, e da
pseudopresença num mundo de comunicações vazias, ideal para o controlo
afectivo, social e político. Orwell sabia que o Big Brother estaria feliz nos
dias de hoje com o permanente ataque a toda a espécie de delegação de poder
pelos procedimentos das democracias, ou pelas hierarquias da competência e do
saber, a favor de um falso empowerment igualitário, que enfraquece os mais
débeis, os mais incultos, e os mais pobres, mas dá mais poder aos poderosos,
aos ricos, aos que estão colocados em lugares decisivos por nascimento,
herança, ou amoralidade. Descreveu, pela primeira vez no 1984, o mundo da
manipulação e geral degenerescência da linguagem, das palavras e das ideias.
Um
mundo onde quem manda reduz as palavras em circulação a uma linguagem gutural,
a preto e branco, sem capacidade expressiva e criadora, mas também desprovida
da capacidade de transportar raciocínios e argumentos lógicos, mas apenas
banhar-nos em pathos. Ele escreveu uma distopia, nós vivemos nessa distopia.
Uma das fontes do 1984 foi o conhecimento que tinha do totalitarismo comunista
e em particular a sua experiência na Guerra Civil espanhola, que lhe serviu
também para escrever Animal Farm.
Mas a outra fonte importante do livro foi a
sua experiência na BBC, na comunicação social em tempo de guerra e no papel que
esta tinha na própria guerra como arma. Arma de propaganda, mas também arma de
manipulação, através da chamada “propaganda negra” ou daquilo a que mais tarde
os serviços soviéticos deram o nome de “desinformação”. Orwell conjugou estas
duas fontes, de origem muito diversa, numa interpretação do valor da verdade, e
da ideia de que quem controla as palavras controla as cabeças e o poder. A isto
Orwell acrescentava algo que sabia estar ausente do mundo da ideologia, uma
genuína compaixão pelos “danados da terra”, pelos que nada tinham, e é a eles
que dá a capacidade de revolta: “If there is hope, it lies in the proles”.
Dois exemplos mostram a manipulação
das palavras, que é hoje uma actividade especializada e lucrativa de agências
de comunicação e publicidade, de assessores de imprensa e de outros amadores de
feiticeiros na Internet, já para não falar dos serviços secretos: um, de há uma
semana na América de Trump, o grande laboratório do Big Brother; e outro dos
nossos anos do lixo, entre a troika e o Governo PSD-CDS. No primeiro caso,
trata-se do interrogatório do candidato a juiz do Supremo Tribunal Ben
Kavanaugh, em que as mesmas armas, espingardas de tiro automático ou
semiautomático, são descritas como “armas de assalto” (“assault weapon”), pelos
que defendem o seu controlo, ou como “espingardas de desporto modernas”
(“modern sporting rifles”), como entendem os defensores da interpretação
literal da Segunda Emenda, para quem o direito de ter, transportar e exibir
armas é intangível.
O exemplo português é um entre
muitos dos anos do Governo da troika-PSD-CDS, que começam a ser perigosamente
esquecidos. Quando começaram os cortes em salários, pensões, reformas, despesas
sociais, durante dois ou três dias, mesmo os membros do Governo usavam a
expressão verdadeira de “cortes”. Depois, de um dia para o outro, e de forma
concertada, deixaram de falar de “cortes” para falar em “poupanças”. O mais
grave é que, como no mundo do Big Brother, a expressão começou a impregnar a
linguagem comum, a começar pela da comunicação social, que nesses dias e
nalguns casos até hoje mostrou uma especial capacidade de ser manipulada pelo
“economês”. Leia-se pois o 1984, ou “releia-se”, que é a forma politicamente
correcta de se dizer que se leu sem se ter lido, até porque é um livro que não
engana ninguém logo à primeira frase: “Era um dia de Abril, frio e cheio de
sol, e os relógios batiam as treze horas.”»
José PAcheco Pereira, "Por que é que devíamos estar a ler hoje 1984?",
in Jornal Público, 22.09.18