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"Corria pelo fundo do mar, perfeitamente livre, como que alado, respirando sem qualquer esforço: apanhava flores lindíssimas, jamais admiradas antes, e escolhia conchas, azuis ou róseas, de formas encantadoramente bizarras. Sentia-se leve e feliz.
E quando, por acaso, se mirou numa estrela de oiro que, cadente, lhe passava em face do rosto, ficou estupefacto: era muito mais jovem, agora.
Se, ao mover-se, fazia ondear as águas azuis, destas desprendia-se uma música doce e perfumada, como ele em sua vida nunca ouvira, nem mesmo na igreja, em dias de órgão. A certa altura, porém, lembrou-se dos filhos pequeninos e quis levar-lhes as flores e as conchas: tentou por isso voltar à superfície. Em vão: sempre que experimentava nadar para terra, o mar tornava-se duro e impenetrável. Angustiado, repetiu a tentativa uma, duas... cem vezes: Impossível. Quis gritar: da boca saía-lhe um som, neutro manso como o duma trompa de caça, quando ouvida de longe. E de novo a estrela lhe passou, lentamente, por diante; ainda uma vez se contemplou nela: sorria! Queria chorar, mas só podia rir. Foi neste momento, no auge da angústia, que o vigia o veio acordar...
Que sonho mais esquisito! (...)
Com bom ou mau tempo, com névoa ou com sol, o jovem contramestre do "D. Dinis", naquele dia, àquela hora, iria ouvir a música do fundo do mar, colher as suas flores maravilhosas, apanhar as suas conchas belíssimas"., "O sonho", páginas 167-168.
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"Hoje não escrevo sobre pesca ou pescadores. Não posso. Estou cheio de ti, meu amor, da recordação exultante da tua pessoa tão querida, desta ânsia dolorosa com que espero os teus beijos...
É o fim da tarde, aqui, nestes mares da Terra Nova. E tudo, tudo me fala de ti: As gaivotas, milhares!, brancas, trespassadas de luz, levam nos bicos, alvoraçadas, os fios da saudade que se evola de mim como um perfume roxo e verde (...) e como elas desenham o teu perfil puríssimo e único... E alinha do horizonte, subtil, definida e límpida, fala-me do corte dos teus lábios, como ela delicada, rosados...
Este ar frio, de neve rarefeita, imaculado... como me faz lembrar a linha da tua fronte tão nobre!
E até as nuvens, pequenas, oiro e rosa, que outra coisa querem dizer que não seja as nossas mãos, as minhas e as tuas, longas... que se buscam?
Meu amor, meu amor, como tu me habitas, a mim, a tudo em meu redor e até à distância!...
E a neve, aquela cobertura virginal que não deixa o castelo da proa, sabes o que é? A oferenda que ambos nos fazemos, olhos nos olhos, entre os lábios e a ave do infinito...", "Poema", página 97.
Bernardo Santareno. (2016). Nos mares dos confins do mundo.E-Primatur.
(Um livro sobre a aventura enorme da pesca do bacalhau nas décadas de cinquenta praticada por portugueses nos mares da Terra Nova. Testemunho de António Marinho do Rosário que integrou a equipa de médicos da frota bacalhoeira. Um testemunho de grande humanidade sobre a viagem e a dureza desse trabalho. Acima da propaganda oficial do regime as palavras sempre mais nobres dos sonhos e das lágrimas dos homens que participaram nessas viagens).